O
carro (Gema)
Fusca é carro de verdade!
Cumpre perfeitamente o objetivo de te levar do ponto A para o ponto B, sem
frescuras. Quase nunca quebra, e se quebra, o conserto custa quase como uma
caixa de Skol. Não é de se admirar, portanto, que o primeiro carro de Henrique,
um cara desencanado por natureza, tenha sido um Fusca 78, cor de gema de ovo! A
máquina foi um presente dos seus pais e veio praticamente original, a não ser
pelo cambio com uma bola vermelha e desenho de caramujo (ou seria siri?) na ponta.
Feita a troca do artefato – haja mau gosto do proprietário anterior! – o carro,
prontamente apelidado de Gema – estava liberado para uso (mal sabia o que lhe
esperava).
Entre a casa de Henrique e
a Faculdade contavam-se 12 quilômetros, percorridos em 20 minutos. O problema é
que ele não era lá um bom motorista, para dizer o mínimo. Tudo bem, não era um
horror como seu Arquimedes, mas apresentava consideráveis limitações, como para
fazer baliza, por exemplo. Isso não o impediu de, dia sim, dia não, assumir o
volante e utilizar o charmoso e, ao mesmo tempo, prático veículo para ir à
Faculdade.
Dia sim, dia não, porque
logo nos primeiros dias de aula Henrique estreitou a amizade com Horácio,
também da sua cidade, e ambos decidiram fazer um rodízio. Segunda iam com o Gema,
terça com o carro de Horácio (um gol azul marinho mais novo, mas totalmente sem
graça e sem apelido), e assim alternadamente.
Tudo legal, se o rodízio, do ponto de vista da economia de combustível,
não fosse uma burrice completa! Para funcionar, obviamente, deveriam morar
relativamente perto, mas não era assim. Para buscar Horácio, Henrique fazia um
desvio que, ao final, aumentava em 2 km o trajeto total; e vice-versa. Os dois
perceberam isso e os colegas da cidade, como Espaguete, Idoso e Javali, tiraram
um sarro danado. Mas eles respondiam que a ideia não era economizar gasolina,
mas ter companhia para conversar e trocar ideias no caminho. Então não encham a
paciência!
Aliás, Horacio é um colega
que, possivelmente, merecerá um capítulo à parte. Não vamos entrar em detalhes
hoje, mas basta dizer que o sujeito calmo, tranquilo e sossegado no horário
comercial, depois que tomava umas e outras, particularmente à noite, se
transformava! Perdia a linha e a noção, continuava gente boa, mas era capaz de
estripulias que fariam corar até o Vampeta!
Bom, mas voltemos ao tema
central: Gema, o carro. Antes mesmo de servir aos propósitos de locomoção e
diversão com os amigos de Faculdade, o veículo foi usado por Henrique numa
aventura familiar. Estava com seu irmão, Betinho, e os primos Afrânio e Dedé. A
diferença de idade entre eles era pequena, de apenas quatro anos, de Afrânio
com 19 para Dedé, com 15. Henrique tinha 18 e Betinho, 16. Compartilhavam,
assim, a sede juvenil por farras e risadas. Saíram então com Henrique no
comando, dirigindo Gema e com a recomendação materna de não chegar tarde e
cuidar dos meninos mais novos (o que foi solenemente ignorado).
Tomaram todas. Lembraram,
sobretudo, da infância e da adolescência em que passavam quase três meses por
ano na chácara dos avôs, dona Zica e seu Mário. Pescavam, andavam de bicicleta,
comiam frutas no pomar e, acima de tudo, jogavam bola. Era um paraíso! As
lembranças lhes entretiveram por toda noite, regadas por cervejas geladas.
Ao entrar no carro e pegar
o caminho de casa, os quatro primos continuaram rindo sem parar. Henrique
conduzia o volante de forma despreocupada, para colocar de uma forma simpática,
e felizmente as ruas estavam vazias naquela madrugada, evitando maiores obstáculos
e transtornos. Mesmo assim, ao fazer uma curva mais fechada próxima a um parque
da cidade, o motorista se atrapalhou e acabou indo reto, avançando sobre um
terreno gramado e com pedregulhos. As risadas foram cessadas pelo susto. O
ambiente estava mal iluminado e escuro, mas eles não bateram em nada (ufa!), e
o carro parou a poucos metros de uma grande lona. Henrique, então, acionou a
luz alta e os quatro puderam ler em letras garrafais: “CIRCO GARCIA”. As
gargalhas voltaram! Seguiram com mais cuidado, mas ainda extremamente felizes
para casa, sem saber que aquele encontro entre os quatro, juntos, nunca mais se
repetiria.
A estreia de Gema nas
baladas noturnas do pessoal da Faculdade foi marcante. A galera combinou de se
encontrar no mesmo bar em que haviam estado no dia trote, chamado de “ilha”. O
problema é que o local não tinha nada de isolado e, na verdade, ficava bem no
centro da cidade. Reavivando as memórias do trote, Henrique havia dado carona justamente
para o cara com quem tivera a primeira conversa naquele dia, Tuco. Mas ao
chegar em frente ao bar, todas as vagas estavam ocupadas e os dois ficaram
dando voltas nas ruas próximas sem encontrar lugar para estacionar. Foi aí que
avistaram Javali, com seu porte indefectível, caminhando pela calçada.
Conversaram e havia uma
“solução”: Javali poderia, sorrateiramente, afastar um pouco os cavaletes que
estavam na rua do bar para preservar algumas guias rebaixadas. Como o Gema, em
seu formato de Fusca, era um carro pequeno, daria para estacionar num espaço
apertado. Traçado o plano genial, Javali colocou os cavaletes para traz e
“criou” uma pequena vaga; Henrique posicionou o carro para baliza e começou a
dar ré seguindo as orientações de Tuco. Já viram né? Pançudo, alcunha mais
apropriada para situação, calculou mal tanto a distância como a velocidade do
carro. O Gema simplesmente atropelou os cavaletes! O pior é que, mesmo assim,
Tuco e Javali, depois de rirem à beça, ainda ajudaram a estacionar o carro, com
os escapamentos traseiros tortos e comendo um pedaço da guia rebaixada. A “ilha”
os aguardava, como também uma multa que chegaria depois.
Outro episódio
inesquecível envolvendo o possante se deu, como de costume, numa volta para
casa em condições alcoólicas adversas (“se beber não dirija” não era uma frase
difundida na época; como também rareavam blitz de política). Nesse dia o repuxo
foi tão grande que Henrique tem dúvidas sobre quem estava ao seu lado.
Provavelmente dois ou três da Faculdade, mas cujas identidades perderam-se no
tempo. Mas ainda é muito presente a lembrança da “façanha” daquele dia. Era
madrugada e subiam uma avenida deserta, conversando besteiras e ouvindo música.
Foi quando Henrique, sem qualquer propósito ou racionalidade (claro), resolveu
“buzinar com a cabeça”. Fez isso uma, duas, três vezes e continuo rindo até
que, na quarta, a peça central do volante do Gema, onde fica a buzina,
simplesmente soltou e caiu-lhe no colo. Sem penar, de supetão, atirou-a pela
janela do carro! Os demais passageiros, incrédulos, esborracharam-se de tanto
rir. Não satisfeito, Henrique diminuiu a velocidade, parou e, aproveitando a
ausência completa de outros veículos, deu ré na avenida para buscar a peça do
volante. Desceu do carro, reencaixou a peça na direção e todos seguiram meio
sem acreditar naquela cena bizarra (e perigosa!), inclusive o próprio Henrique.
Em seu único ano de vida
com Pançudo (Henrique), Gema foi um carro útil, que cumpriu plenamente suas
funções. Naquele primeiro ano de Faculdade, além do rodízio peculiar acertado
com o Horário, que os levava para as aulas, inúmeras foram as saídas noturnas,
sempre com a volta segura para casa, por incrível que pareça. Vários amigos
sentiram o conforto daquelas poltronas de couro, desfrutando de um espaço
interno ímpar e de um rádio que tocava tanto AM como FM.
Talvez Henrique tivesse
ficado com Gema por mais tempo. Mas no início do segundo ano de Faculdade,
justamente num dia em que decidiu não dirigir para poder beber à vontade, numa
daquelas ironias de vida, acabou-se a vida de motorista de Henrique (e mesmo
assim o estimado fusca pôde, de alguma forma, continuar a ser útil). Mas isso
fica para outra história....