sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O carro (gema)

O carro (Gema)

Fusca é carro de verdade! Cumpre perfeitamente o objetivo de te levar do ponto A para o ponto B, sem frescuras. Quase nunca quebra, e se quebra, o conserto custa quase como uma caixa de Skol. Não é de se admirar, portanto, que o primeiro carro de Henrique, um cara desencanado por natureza, tenha sido um Fusca 78, cor de gema de ovo! A máquina foi um presente dos seus pais e veio praticamente original, a não ser pelo cambio com uma bola vermelha e desenho de caramujo (ou seria siri?) na ponta. Feita a troca do artefato – haja mau gosto do proprietário anterior! – o carro, prontamente apelidado de Gema – estava liberado para uso (mal sabia o que lhe esperava).

Entre a casa de Henrique e a Faculdade contavam-se 12 quilômetros, percorridos em 20 minutos. O problema é que ele não era lá um bom motorista, para dizer o mínimo. Tudo bem, não era um horror como seu Arquimedes, mas apresentava consideráveis limitações, como para fazer baliza, por exemplo. Isso não o impediu de, dia sim, dia não, assumir o volante e utilizar o charmoso e, ao mesmo tempo, prático veículo para ir à Faculdade.

Dia sim, dia não, porque logo nos primeiros dias de aula Henrique estreitou a amizade com Horácio, também da sua cidade, e ambos decidiram fazer um rodízio. Segunda iam com o Gema, terça com o carro de Horácio (um gol azul marinho mais novo, mas totalmente sem graça e sem apelido), e assim alternadamente.  Tudo legal, se o rodízio, do ponto de vista da economia de combustível, não fosse uma burrice completa! Para funcionar, obviamente, deveriam morar relativamente perto, mas não era assim. Para buscar Horácio, Henrique fazia um desvio que, ao final, aumentava em 2 km o trajeto total; e vice-versa. Os dois perceberam isso e os colegas da cidade, como Espaguete, Idoso e Javali, tiraram um sarro danado. Mas eles respondiam que a ideia não era economizar gasolina, mas ter companhia para conversar e trocar ideias no caminho. Então não encham a paciência!

Aliás, Horacio é um colega que, possivelmente, merecerá um capítulo à parte. Não vamos entrar em detalhes hoje, mas basta dizer que o sujeito calmo, tranquilo e sossegado no horário comercial, depois que tomava umas e outras, particularmente à noite, se transformava! Perdia a linha e a noção, continuava gente boa, mas era capaz de estripulias que fariam corar até o Vampeta!

Bom, mas voltemos ao tema central: Gema, o carro. Antes mesmo de servir aos propósitos de locomoção e diversão com os amigos de Faculdade, o veículo foi usado por Henrique numa aventura familiar. Estava com seu irmão, Betinho, e os primos Afrânio e Dedé. A diferença de idade entre eles era pequena, de apenas quatro anos, de Afrânio com 19 para Dedé, com 15. Henrique tinha 18 e Betinho, 16. Compartilhavam, assim, a sede juvenil por farras e risadas. Saíram então com Henrique no comando, dirigindo Gema e com a recomendação materna de não chegar tarde e cuidar dos meninos mais novos (o que foi solenemente ignorado).  
Tomaram todas. Lembraram, sobretudo, da infância e da adolescência em que passavam quase três meses por ano na chácara dos avôs, dona Zica e seu Mário. Pescavam, andavam de bicicleta, comiam frutas no pomar e, acima de tudo, jogavam bola. Era um paraíso! As lembranças lhes entretiveram por toda noite, regadas por cervejas geladas.

Ao entrar no carro e pegar o caminho de casa, os quatro primos continuaram rindo sem parar. Henrique conduzia o volante de forma despreocupada, para colocar de uma forma simpática, e felizmente as ruas estavam vazias naquela madrugada, evitando maiores obstáculos e transtornos. Mesmo assim, ao fazer uma curva mais fechada próxima a um parque da cidade, o motorista se atrapalhou e acabou indo reto, avançando sobre um terreno gramado e com pedregulhos. As risadas foram cessadas pelo susto. O ambiente estava mal iluminado e escuro, mas eles não bateram em nada (ufa!), e o carro parou a poucos metros de uma grande lona. Henrique, então, acionou a luz alta e os quatro puderam ler em letras garrafais: “CIRCO GARCIA”. As gargalhas voltaram! Seguiram com mais cuidado, mas ainda extremamente felizes para casa, sem saber que aquele encontro entre os quatro, juntos, nunca mais se repetiria.

A estreia de Gema nas baladas noturnas do pessoal da Faculdade foi marcante. A galera combinou de se encontrar no mesmo bar em que haviam estado no dia trote, chamado de “ilha”. O problema é que o local não tinha nada de isolado e, na verdade, ficava bem no centro da cidade. Reavivando as memórias do trote, Henrique havia dado carona justamente para o cara com quem tivera a primeira conversa naquele dia, Tuco. Mas ao chegar em frente ao bar, todas as vagas estavam ocupadas e os dois ficaram dando voltas nas ruas próximas sem encontrar lugar para estacionar. Foi aí que avistaram Javali, com seu porte indefectível, caminhando pela calçada.

Conversaram e havia uma “solução”: Javali poderia, sorrateiramente, afastar um pouco os cavaletes que estavam na rua do bar para preservar algumas guias rebaixadas. Como o Gema, em seu formato de Fusca, era um carro pequeno, daria para estacionar num espaço apertado. Traçado o plano genial, Javali colocou os cavaletes para traz e “criou” uma pequena vaga; Henrique posicionou o carro para baliza e começou a dar ré seguindo as orientações de Tuco. Já viram né? Pançudo, alcunha mais apropriada para situação, calculou mal tanto a distância como a velocidade do carro. O Gema simplesmente atropelou os cavaletes! O pior é que, mesmo assim, Tuco e Javali, depois de rirem à beça, ainda ajudaram a estacionar o carro, com os escapamentos traseiros tortos e comendo um pedaço da guia rebaixada. A “ilha” os aguardava, como também uma multa que chegaria depois.

Outro episódio inesquecível envolvendo o possante se deu, como de costume, numa volta para casa em condições alcoólicas adversas (“se beber não dirija” não era uma frase difundida na época; como também rareavam blitz de política). Nesse dia o repuxo foi tão grande que Henrique tem dúvidas sobre quem estava ao seu lado. Provavelmente dois ou três da Faculdade, mas cujas identidades perderam-se no tempo. Mas ainda é muito presente a lembrança da “façanha” daquele dia. Era madrugada e subiam uma avenida deserta, conversando besteiras e ouvindo música. Foi quando Henrique, sem qualquer propósito ou racionalidade (claro), resolveu “buzinar com a cabeça”. Fez isso uma, duas, três vezes e continuo rindo até que, na quarta, a peça central do volante do Gema, onde fica a buzina, simplesmente soltou e caiu-lhe no colo. Sem penar, de supetão, atirou-a pela janela do carro! Os demais passageiros, incrédulos, esborracharam-se de tanto rir. Não satisfeito, Henrique diminuiu a velocidade, parou e, aproveitando a ausência completa de outros veículos, deu ré na avenida para buscar a peça do volante. Desceu do carro, reencaixou a peça na direção e todos seguiram meio sem acreditar naquela cena bizarra (e perigosa!), inclusive o próprio Henrique.

Em seu único ano de vida com Pançudo (Henrique), Gema foi um carro útil, que cumpriu plenamente suas funções. Naquele primeiro ano de Faculdade, além do rodízio peculiar acertado com o Horário, que os levava para as aulas, inúmeras foram as saídas noturnas, sempre com a volta segura para casa, por incrível que pareça. Vários amigos sentiram o conforto daquelas poltronas de couro, desfrutando de um espaço interno ímpar e de um rádio que tocava tanto AM como FM.

Talvez Henrique tivesse ficado com Gema por mais tempo. Mas no início do segundo ano de Faculdade, justamente num dia em que decidiu não dirigir para poder beber à vontade, numa daquelas ironias de vida, acabou-se a vida de motorista de Henrique (e mesmo assim o estimado fusca pôde, de alguma forma, continuar a ser útil). Mas isso fica para outra história....