Na próxima sexta-feira, dia 22 de Julho, será realizado o seminário: “Lei de Cotas 20 anos: Chegamos ao fim ou não?”, organizado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) e o Espaço da Cidadania de Osasco. A data marca os vinte anos da publicação da Lei 8.213 de 1991, que em seu artigo 93 definiu as vagas reservadas às pessoas com deficiência e reabilitados nas empresas com cem ou mais empregados. São esperados mais de 500 participantes neste importante evento que realizará um balanço das dificuldades e avanços nas últimas décadas, bem como pretende discutir as perspectivas e desafios para o futuro.
Recebi com muito prazer o convite para participar do seminário, porém, em função dos problemas de saúde, já comuniquei aos organizadores que não conseguirei estar presente. Mas combinamos que seria interessante que eu fizesse uma apresentação com os principais aspectos abordados na minha tese de doutorado que versou sobre o tema. Isso foi feito e será apresentado no dia 22/07 pela minha amiga e consultora em inclusão Marta Gil, que poderá inclusive incrementar a exposição com sua vasta experiência na área. Além disso, combinei com Carlos Clemente, coordenador do Espaço da Cidadania em Osasco, que faria um texto a ser enviado aos inscritos no seminário (e que poderão acessá-lo aqui no blog também). Segue então esse texto-roteiro, com base na apresentação já elaborada.
O tema proposto na mesa em que eu participaria – porque estamos aqui? – motivou esta exposição, pois procurei responder, de forma bastante simples e objetiva, esta questão. Destaquei três grandes motivos pelos quais lutamos e devemos continuar empenhados na inserção, com qualidade, das pessoas com deficiência no mercado de trabalho: a) existe um contexto histórico de luta pela cidadania e acesso ao trabalho deste contingente populacional no Brasil e no Mundo; b) há um arcabouço jurídico-institucional construído democraticamente nos últimos 30 anos que garante direitos às pessoas com deficiência; c) finalmente porque, apesar dos avanços, o cenário atual de inclusão dessa parcela da população no mercado de trabalho formal no Brasil ainda não é satisfatório.
Contexto Histórico
É preciso ter em mente que as sociedades, em todos os países e ao longo da história, sempre conviveram com a questão da existência de pessoas com limitações físicas, sensoriais e/ou cognitivas. Isso pode parecer de uma obviedade desnecessária, mas é preciso reafirmar tal constatação já que algumas pessoas parecem acreditar que só temos pessoas com deficiência de alguns anos para cá. O fato é que, de uma forma ou de outra, todos os países, desde os tempos mais antigos, conviveram com indivíduos com algum tipo de deficiência e, paulatinamente, pensaram formas de integrar socialmente essas pessoas. Felizmente, e de maneira irregular e variando de um país para o outro, foi sendo alterado o “status social” das pessoas com deficiência, vistas anteriormente – e ainda recentemente – como “incapazes” ou “inválidas”.
A discussão acima está muito bem realizada em dois livros que tratam, respectivamente, da participação das pessoas com deficiência na História Mundial e na História do Brasil. São eles: a) Epopéia Ignorada – A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje, Otto Marques da Silva, 1987; b) Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, Emílio Figueira, 2008. Os títulos sugestivos desses trabalhos, realizados com um intervalo de praticamente vinte anos, revelam uma característica marcante do que foi a luta pela sobrevivência e cidadania deste grupo populacional: a superação da invisibilidade.
Otto Marques da Silva (1987) recupera a trajetória de pessoas com deficiência desde os primórdios da História Mundial. Mostra como, da eliminação sumária ao nascer, indivíduos com limitações físicas, sensoriais e/ou cognitivas foram sendo gradativamente incorporados ao tecido social. Emílio Figueira (2008) faz este mesmo caminhar para a História do Brasil. Destaca como é difícil, mas necessário, romper com questões culturais negativas associadas às pessoas com deficiência, como o assistencialismo, a piedade e a própria discriminação.
Em síntese, a história das pessoas com deficiência é um processo de auto-afirmação. Buscando falar por si mesmas, contra a tutela institucional e até mesmo familiar a que estavam submetidas, as pessoas com deficiência se afirmaram como responsáveis pelo seu próprio destino. Nesse processo, o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD), proclamado pela ONU em 1981, foi fundamental. Nas palavras de Figueira (2008):
“Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente -, tomando consciência de si, passou a se organizar politicamente. E, como conseqüência, a ser notada na sociedade, atingindo significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância” (grifos nossos. Figueira, 2008, p. 115).
As discussões contemporâneas sobre a Lei de Cotas e outras legislações devem levar em conta este contexto histórico. Além da luta por reconhecimento das pessoas com deficiência, a década de 80 foi um período de redemocratização do país. A partir da Constituição de 1988 uma série de direitos, como o acesso ao trabalho garantido por uma ação afirmativa, foram conquistados pelas pessoas com deficiência. Estamos aqui hoje por causa dessa trajetória histórica de luta pela cidadania.
Arcabouço Jurídico-Institucional
A Constituição de 1988, em vários artigos, faz menção às pessoas com deficiência e define direitos a serem concretizados em legislações posteriores. Dentre eles, destacamos os seguintes: Artigo 7 – proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”; Artigo 37 – prevê que legislação complementar “reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Artigo 203 – no inciso V postula a “garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.
A partir das diretrizes e princípios da Constituição, nos anos seguintes foram elaboradas Leis e Decretos sobre uma gama variada de direitos relacionados às pessoas com deficiência. A Lei 7.853 de 1989 definiu o que foi chamado na época de uma “política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência”. Encontra-se na Lei 7.853/89 a origem da determinação para reserva de vagas para pessoas com deficiência nos concursos públicos e no setor privado: “deve haver adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado” (alínea “d”, seção III, artigo 2º.)
A reserva de vagas nos concursos públicos e as cotas no setor privado foram previstas, respectivamente, nas legislações que se seguem: a) Lei 8.112 de 11 de Dezembro de 1990, que versa sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União. b) Lei 8.213 de 24 de Julho de 1991, que dispõe sobre os planos de Benefícios da Previdência Social. Assim sendo, o que conhecemos hoje por “Lei de Cotas” é, na verdade, o artigo 93 da Lei 8.213/91. Este artigo, já amplamente difundido, é que define os percentuais de 2% a 5% das vagas a serem ocupadas por reabilitados ou portadores de deficiência nas empresas com cem ou mais empregados.
Porém, foram necessários dez anos para que o Decreto Federal 3.298 de 1999 regulamentasse a “política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência”, fazendo valer e definindo normas para a reserva de vagas nos concurso públicos e para as cotas no setor privado. Além disso, Portarias do Ministério do Trabalho e Emprego nos anos seguintes foram necessárias para definir competências, formas de fiscalização e multas, dentre outros aspectos. Isso significa que, na prática, os 20 anos da Lei de Cotas ainda não chegaram, existindo inclusive possibilidades de aperfeiçoamento desta legislação.
Quando debatemos nos dias atuais a eficácia da “Lei de Cotas”, os resultados alcançados e as perspectivas futuras, é preciso ter em consideração o arcabouço jurídico-institucional que respaldas as pessoas com deficiência não só para o acesso ao trabalho, mas também no que diz respeito à sua cidadania plena. Atualmente, há um novo “farol” para as legislações sobre o tema: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. Estamos aqui hoje por causa do trabalho do movimento das pessoas com deficiência, representantes de entidades, gestores públicos e legisladores que construíram este arcabouço jurídico.
Cenário Atual
Para uma avaliação a respeito do cenário atual de inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, pelo menos duas perguntas iniciais precisam ser feitas: 1. Qual o número de pessoas com deficiência em idade produtiva no Brasil? 2. Quantas pessoas com deficiência desta faixa etária estão no mercado formal de trabalho? Respondê-las nem de longe esgota a discussão, mas nos fornece uma base para iniciar o debate.
Ø Qual o número de pessoas com deficiência em idade produtiva no Brasil?
Para tentar responder a esta pergunta, é preciso dizer, em primeiro lugar, que o conceito de deficiência, como afirma a própria Convenção, é algo dinâmico, não consensual. Porém, para o balizamento de políticas públicas e avaliação de ações afirmativas, é preciso buscar parâmetros mais objetivos. Assim sendo, ao utilizarmos os dados do Censo de 2000, já que os resultados da amostra do Censo de 2010 só deverão ser divulgados no início de 2012, propõe-se as seguintes restrições:
a) limitar o grupo de pessoas com deficiência para aqueles que disseram ter “total” ou “grande” dificuldade em enxergar, ouvir ou caminhar/subir escadas (incluindo também os que disseram ter “deficiência mental”), nos termos do questionário utilizado pelo IBGE no Censo de 2000;
b) restringir nosso universo às pessoas de 15 a 59 anos, evitando assim a super-representação da população idosa, que declarou algum nível de incapacidade em função do processo natural de envelhecimento.
Desses critérios resulta a seguinte estimativa populacional:
Tipo de Deficiência | Número de pessoas e percentual relativo |
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Deficiência intelectual/mental | 1.924.975 (31,5%) |
Deficiência visual | 1.808.727 (29,6%) |
Deficiência física | 1.642.813 (26,9%) |
Deficiência auditiva | 734.611 (12,0%) |
Total | 6.111.126 (100,0%) |
Utilizando-se de critérios mais restritos, teríamos no país pouco mais do que 6 milhões de pessoas com deficiência em idade produtiva.
Ø Quantas pessoas com deficiência desta faixa etária estão no mercado formal de trabalho?
As fontes para responder a esta pergunta advém dos dados da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e das informações disponíveis na RAIS – Relação Anual de Informações Sociais. De forma simplificada, pode-se dizer que o resultado das fiscalizações indica o volume ou fluxo de contratações, enquanto que a RAIS mostra o “estoque” de trabalhadores com deficiência num determinado momento. Tendo esta pesquisa como base, temos o seguinte quadro:
Ano | Trabalhadores com deficiência – RAIS |
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2007 | 348.818 |
2008 | 323.210 |
2009 | 288.593 |
2010 | 306.013 |
Média 4 anos | 316.659 |
Em média, nos últimos 4 anos disponíveis, pouco mais do que 300 mil pessoas com deficiência estiveram no mercado formal de trabalho no Brasil.
Ao debater a “Lei de Cotas” e a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, deve-se partir de um patamar mínimo de conhecimento sobre a real participação deste contingente populacional no trabalho formal. As estimativas mostram que, nacionalmente, em média, apenas 5% das pessoas com deficiência em idade produtiva estão trabalhando formalmente (aproximando os números, apenas 300 mil num universo de 6 milhões de indivíduos) Estamos aqui hoje porque ainda há um longo caminho para que mais pessoas com deficiência possam trabalhar de forma regular e formal.
Considerações Finais
Outros números e dados poderiam ser apresentados, como o número bem maior de pessoas com deficiência trabalhando nos Estados de São Paulo, Ceará e Rio Grande do Sul, ou em municípios como Osasco ou Campinas. Há também claros indicadores da “preferência” dos empregadores por determinados tipos de deficiência, notadamente a física e a auditiva em detrimento da visual e intelectual. E a questão dos rendimentos médios das pessoas com deficiência ocupadas, que são maiores do que a média dos rendimentos do conjunto dos trabalhadores.
Mas, para finalizar, vale registrar o seguinte número: 900 mil vagas. Pela RAIS 2010, este é aproximadamente o número de vagas que seria ocupado se a “Lei de Cotas” fosse cumprida na íntegra. Como, mesmo por critérios mais restritivos, estimamos a população com deficiência em idade produtiva em cerca de 6 milhões pessoas, ficam claros os limites deste instrumento de ação afirmativa. Daí decorrem cinco sugestões para que aumente o acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho formal:
a) a ampliação do conhecimento público acerca das pessoas com deficiência e sua inserção no trabalho; b) as questões ligadas à legislação (não só em relação à chamada “Lei de Cotas”, mas também à legislação trabalhista/previdenciária; c) o fortalecimento da inclusão escolar e das possibilidades de qualificação profissional, inclusive dentro das empresas; d) a acessibilidade como conceito-síntese da sociedade inclusiva; e) a consolidação de novos paradigmas e formas de pensar a temática da deficiência, na sociedade em geral, mas especialmente entre os empregadores (empresários ou gestores públicos) e as próprias pessoas com deficiência.
Bom, é isso aí. O texto já ficou enorme e fugiu dos padrões aqui do blog. Para quem tiver interesse, posso mandar as conclusões da tese na íntegra.