quinta-feira, 29 de setembro de 2011

As pessoas com deficiência na História - parte II


No texto anterior, buscou-se recuperar marcos históricos da trajetória das pessoas com deficiência na História Mundial. Na postagem abaixo, o mesmo é realizado para a História do Brasil. Boa leitura!

Trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil: “Caminhando em silêncio”

Os arquivos da História brasileira registram referências variadas a “aleijados”, “enjeitados”, “mancos”, “cegos” ou “surdos-mudos”. No entanto, assim como ocorria no continente europeu, a quase totalidade dessas informações ou comentários está diluída nas menções relativas à população pobre e miserável. Ou seja, também no Brasil, a pessoa deficiente foi incluida, por vários séculos, dentro da categoria mais ampla dos “miseráveis”, talvez o mais pobre entre os pobres (Silva, 1987).


Figueira (2008) realiza trajetória semelhante àquela de Silva (1987), mas concentra-se na história do Brasil. Figueira (2008) propõe que seu livro marque uma introdução à história das pessoas com deficiência no Brasil, definindo também sua tese principal, com a qual concordamos integralmente: “(...) as questões que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil – por exemplo, mecanismos de exclusão, políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade, oportunismo, dentre outras – foram construídas culturalmente” (grifos nossos. Figueira, 2008, p.17). Assim sendo, é importante termos em mente que questões culturais demoram a ser revertidas, mas este é o movimento que tem sido priorizado pelas pessoas com deficiência nas últimas décadas.


Tendo em vista essa perspectiva geral, Figueira (2008) inicia seu percurso com os primeiros “ecos históricos” da formação do Brasil. Através deles, é possível identificar aspectos importantes, como a política de exclusão ou rejeição das pessoas com algum tipo de deficiência praticada pela maioria dos povos indígenas, os maus-tratos e a violência como fatores determinantes da deficiência nos escravos africanos, e como, desde os primeiros momentos da nossa história, consolidou-se a associação entre deficiência e doença.


Sobre o primeiro aspecto, são reproduzidos relatos históricos que atestam condutas, práticas e costumes indígenas que significavam a eliminação sumária de crianças com deficiência ou a exclusão daquelas que viessem a adquirir algum tipo de limitação física ou sensorial. Cabe destacar que não podemos julgar tais práticas com os olhos de hoje, o que levaria a uma análise pejorativa e até mesmo preconceituosa em relação à população indígena.


Mas, dito isso, deve-se reconhecer que, entre as populações indígenas que habitavam o território que viria a ser o Brasil, predominou a prática de exclusão das crianças e abandono dos que adquiriam uma deficiência. Tais costumes não diferem muito daqueles também observados em outros povos da História Antiga e Medieval, onde a deficiência, principalmente quando ocorria no nascimento de uma criança, “não era vista com bons olhos”, mas sim entendida como um mau sinal, castigo dos deuses ou de forças superiores.


As crendices e superstições associadas às pessoas com deficiência continuaram a se reproduzir ao longo da história brasileira. Assim como os curandeiros indígenas, os “negro-feiticeiros” também relacionavam o nascimento de crianças com deficiência a castigo ou punição. Na verdade, mesmo para doutrinas religiosas contemporâneas, até as deficiências adquiridas são vistas como previamente determinadas por forças divinas ou espirituais. Não vamos explorar essa questão neste artigo, mas vale o registro desse aspecto que, de certa forma, é uma contradição com o paradigma social e dos direitos humanos com que se tem tratado esse assunto.


Longe de ser um mal sobrenatural, a deficiência física ou sensorial nos negros escravos decorreu, inúmeras vezes, dos castigos físicos a que eram submetidos. De início, a forma como se dava o tráfico negreiro, em embarcações superlotadas e em condições desumanas, já representava um meio de disseminação de doenças incapacitantes, que deixavam seqüelas e não raro provocavam a morte de um número considerável de escravos.


Os documentos oficiais da época não deixam dúvidas quanto à violência e crueldade dos castigos físicos aplicados tanto nos engenhos de açúcar como nas primeiras fazendas de café. O rei D. João V, por exemplo, em alvará de 03 de março de 1741, define expressamente a amputação de membros como castigo aos negros fugitivos que fossem capturados. Uma variedade de punições, do açoite à mutilação, eram previstas em leis e contavam com a permissão (e muitas vezes anuência) da Igreja Católica. Talvez o número de escravos com deficiência só não tenha sido maior porque tal condição representava prejuízo para o seu proprietário, que não podia mais contar com aquela mão-de-obra.


Os colonos portugueses, desde o momento em que chegaram ao território descoberto por Cabral, sofreram com as condições climáticas, como o forte calor, além da enorme quantidade de insetos. Estas características tropicais repercutiram na saúde e bem-estar dos europeus, sendo que “algumas dessas enfermidades de natureza muito grave chegaram a levá-los a aquisição de severas limitações físicas ou sensoriais” (Figueira, 2008, p. 55). Observando a formação da população no Brasil Colonial, o historiador da medicina Licurgo Santos Filho acentua que: “tal e qual como entre os demais povos, e no mesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de deformidades congênitas ou adquiridas. Foram comuns os coxos, cegos, zambros e corcundas” (Santos Filho apud Figueira, 2008, p. 56). As condições de tratamento da maioria das enfermidades não eram adequadas e continuariam assim por várias décadas.


Já no século XIX, a questão da deficiência aparece de maneira mais recorrente em função do aumento dos conflitos militares (Canudos, outras revoltas regionais e a guerra contra o Paraguai). O general Duque de Caixas externou ao Governo Imperial suas preocupações com os soldados que adquiriam deficiência. Foi então inaugurado no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1868, o “Asilo dos Inválidos da Pátria”, onde “seriam recolhidos e tratados os soldados na velhice ou os mutilados de guerra, além de ministrar a educação aos órfãos e filhos de militares” (Figueira, 2008, p. 63). Apesar da intenção humanitária, as referências históricas expressam um quadro de extrema precariedade no funcionamento da instituição durante o período imperial . Mesmo assim, e certamente com alguma melhora nas condições de atendimento, o Asilo Inválidos da Pátria permaneceu funcionando por 107 anos, somente sendo desativado em 1976.


O avanço da medicina ao longo do século XX trouxe consigo uma maior atenção em relação aos deficientes. A criação dos hospitais-escolas, como o Hospital das Clínicas de São Paulo, na década de 40, significou a produção de novos estudos e pesquisas no campo da reabilitação. Nesse contexto, como não poderia ser diferente, havia uma clara associação entre a deficiência e a área médica. Na verdade, ainda em meados do século XIX, com a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854), ficava explícita uma relação entre doença e deficiência que, sem exagero algum, permanece até os dias atuais (em que pese a luta do movimento organizado das pessoas com deficiência a partir de 1981 pelo chamado “modelo social” para tratar dessa questão, em oposição ao modelo “médico-clínico”).


O fato é que, ao longo de nossa história, assim como ocorreu em outros países, a deficiência foi tratada em ambientes hospitalares e assistenciais. Ao estudar o assunto, os médicos tornavam-se os grandes especialistas nessa seara e passavam a influenciar, por exemplo, a questão educacional das pessoas com deficiência, tendo atuação direta como diretores ou mesmo professores das primeiras instituições brasileiras voltadas para a população em questão.


O grau de desconhecimento sobre as deficiências e suas potencialidades, porém, permaneceu elevado na primeira metade do século XX, o que se percebe pelo número considerável de pessoas com deficiência mental tratadas como doentes mentais. A falta de exames ou diagnósticos mais precisos resultou numa história de vida trágica para milhares de pessoas nesta condição, internadas em instituições e completamente apartadas do convívio social.


Antes da existência das instituições especializadas, as pessoas com deficiência tiveram, em grande medida, sua trajetória de vida definida quase que exclusivamente pelas respectivas famílias. O Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854), que citamos acima, marca o momento a partir do qual a questão da deficiência deixou de ser responsabilidade única da família, passando a ser um “problema” do Estado. Mas não enquanto uma questão geral de política pública, pois o que ocorreu foi a transferência dessa responsabilidade para instituições privadas e beneficentes, eventualmente apoiados pelo Estado. Estas instituições ampliaram sua linha de atuação para além da reabilitação médica, assumindo a educação das pessoas com deficiência. Até 1950, segundo dados oficiais, havia 40 estabelecimentos de educação especial somente para deficientes intelectuais (14 para outras deficiências, principalmente a surdez e a cegueira).


Na década de 40, cunhou-se a expressão “crianças excepcionais”, cujo significado se referia a “aquelas que se desviavam acentuadamente para cima ou para baixo da norma do seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais” (Figueira, 2008, p. 94). O senso comum indicava que estas crianças não poderiam estar nas escolas regulares, do que decorre a criação de entidades até hoje conhecidas, como a Sociedade Pestallozzi de São Paulo (1952) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE do Rio de Janeiro (1954). Essas entidades, até hoje influentes, passaram a pressionar o poder público para que este incluísse na legislação e na dotação de recursos a chamada “educação especial”, o que ocorre, pela primeira vez, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 4.024, de 20 de dezembro de 1961.


Felizmente, percebeu-se com o tempo que, assim como acontecia em outros países, as pessoas com deficiência poderiam estar nos ambientes escolares e de trabalho comuns a toda população, freqüentando também o comércio, bares, restaurantes ou prédios públicos, enfim, não precisariam estar sempre circunscritas ao espaço familiar ou das instituições especializadas. Esta percepção está refletida na expansão de leis e decretos sobre os mais variados temas a partir, principalmente, da década de 80, como discutiremos mais à frente.


A nossa trajetória histórica, quando as pessoas com deficiência eram “ignoradas” ou “caminhavam em silêncio”, se encerra no ano de 1981, declarado pela ONU como Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD). De acordo com Figueira (2008):


“Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente -, tomando consciência de si, passou a se organizar politicamente. E, como conseqüência, a ser notada na sociedade, atingindo significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância” (grifos nossos. Figueira, 2008, p. 115).


A palavra-chave do AIPD foi “conscientização”, tendo sido organizadas várias manifestações para alertar sobre a própria existência e os direitos das pessoas com deficiência, contra a invisibilidade. Em que pesem as críticas e relatos eventuais de descontentamento, o fato é que, para a maioria daqueles que estiveram envolvidos, o Ano Internacional cumpriu o seu papel de chamar a atenção da sociedade para a questão da deficiência. Como afirma Figueira: “boa ou má, a situação das pessoas com deficiência começou a ser divulgada a partir de 1981. Inclusive, elas mesmas começaram a tomar consciência de si como cidadãos, passando a se organizar em grupos ou associações” (Figueira, 2008, p. 119).

Em outras palavras, é claro que anteriormente tivemos inúmeros casos de êxito individual de pessoas com deficiência, mas 1981 marca um reconhecimento mútuo e coletivo da situação em que se encontravam muitos portadores de deficiência. Um mundo “obscuro” ou “ignorado”, nas palavras de publicações da época, não poderia mais ser escondido da sociedade e do poder público, continuando somente como “um peso ou fardo individual e/ou familiar”.

Portanto, o percurso histórico das pessoas com deficiência no Brasil, assim como ocorreu em outras culturas e países, foi marcado por uma fase inicial de eliminação e exclusão, passando-se por um período de integração parcial através do atendimento especializado. Estas fases deixaram marcas e rótulos associados às pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou doentes crônicas. Romper com esta visão, que implica numa política meramente assistencialista para as pessoas com deficiência, não é uma tarefa fácil. Mas, com menor ou maior êxito, isso foi feito com o avanço da legislação nacional sobre este tema, contando agora com a contribuição direta das próprias pessoas com deficiência.


Este movimento culmina com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) pelo Brasil, conferindo-lhe status de emenda constitucional. A participação direta e efetiva dos indivíduos com limitações físicas, sociais e cognitivas na elaboração da Convenção (e posteriormente na sua internalização) não foi fruto do acaso, mas decorre do paulatino fortalecimento deste grupo populacional, que sobreviveu e passou a exigir direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
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Referências bibliográficas:
Epopéia Ignorada – A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje, Otto Marques da Silva, 1987.
Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, Emílio Figueira, 2008. 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

As pessoas com deficiência na História - parte I


Este texto mais longo, que será apresentado em duas partes aqui no blog, tem como objetivo pontuar aspectos históricos que ilustram a trajetória das pessoas com deficiência. Trata-se de uma síntese de um item da minha tese de doutorado, tendo como referência dois livros que se preocuparam com esta temática, sobre a qual não existe um aprofundamento maior: “Epopéia Ignorada – A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje”, escrita por Otto Marques da Silva em 1987; e “Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, de Emílio Figueira, publicada em 2008.


Os títulos sugestivos desses trabalhos, realizados com um intervalo de praticamente vinte anos, revelam uma característica marcante do que foi a luta pela sobrevivência e cidadania deste grupo populacional ao longo da história: a superação da invisibilidade.

Ao propor este tema, é preciso deixar claro que o percurso histórico no qual, gradativamente, pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas foram sendo incorporadas ao tecido ou estrutura social é um processo errático, não-linear e marcado, invariavelmente, por trajetórias individuais. Não se pode visualizar um movimento contínuo e homogêneo de integração, pois os sentimentos e a maneira pela qual a sociedade enxergava as pessoas com deficiência variavam também de um país para outro num mesmo período. Durante o século XX, por exemplo, pessoas com deficiência foram submetidas a “experiências científicas” na Alemanha nazista de Hitler. Ao mesmo tempo, mutilados de guerra eram considerados heróis em países como os EUA, recebendo honrarias e tratamento em instituições do governo.

Feita essa ressalva, porém, não deixa de ser interessante acompanhar o percurso histórico das pessoas com deficiência ao longo do tempo, no intuito de observar mudanças na percepção social relativa a este grupo populacional. Nessa primeira parte, trataremos da História Mundial, deixando para uma postagem posterior este caminhar na História do Brasil.


 A “epopéia ignorada” das pessoas com deficiência na História Mundial

As pessoas com deficiência, via de regra, receberam dois tipos de tratamento quando se observa a História Antiga e Medieval: a rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar os filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Da mesma forma,  em Esparta, os bebês e as pessoas que adquiriam alguma deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios. Já em Atenas, influenciados por Aristóteles – que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça” – os deficientes eram amparados e protegidos pela sociedade.

Silva (1987) descreve inúmeros episódios e/ou referências históricas aludindo ao contingente de pessoas com deficiência. Não cabe aqui reproduzir esta narrativa, que parte da História Antiga e termina já no final do século XX. Mas é interessante realçar alguns aspectos trabalhados por este autor na “epopéia ignorada” das pessoas com deficiência ao longo da História.

O primeiro deles diz respeito à constatação de que sempre existiram na História indivíduos com algum tipo de limitação física, sensorial ou cognitiva. Como afirma Silva (1987): “anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria humanidade” (Silva, 1987, p. 21). Esta afirmação, que pode parecer óbvia ou desnecessária, é válida no sentido de reconhecer que nos grupos humanos, desde o mundo primitivo até os dias atuais, sempre houve pessoas que nasceram com alguma limitação ou durante a vida deixaram de andar, ouvir ou enxergar. Tragicamente, durante muitos séculos, a existência destas pessoas foi ignorada por um sentimento de indiferença e preconceito nas mais diversas sociedades e culturas; mas elas, de uma forma ou de outra, sobreviveram.

A partir de 2.500 a.C., com o aparecimento da escrita no Egito Antigo, há indicativos mais seguros quanto à existência e às formas de sobrevivência de indivíduos com deficiência. Dentre os povos da chamada História Antiga, os egípcios são aqueles cujos registros são mais remotos. Os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito claros não só da antiguidade de alguns “males incapacitantes”, como também das diferentes formas de tratamento que possibilitaram a vida de indivíduos com algum grau de limitação física, intelectual ou sensorial.

Silva (1987) cita, por exemplo, a Escola de Anatomia da cidade de Alexandria, que existiu no período de 300 a.C. Dela ficaram registros da medicina egípcia utilizada para o tratamento de males que afetavam os ossos e os olhos das pessoas adultas. Existem até passagens históricas que fazem referência aos cegos do Egito e ao seu trabalho em atividades artesanais. As famosas múmias do Egito, que permitiam a conservação dos corpos por muitos anos, possibilitaram o estudo dos restos mortais de faraós e nobres do Egito que apresentavam distrofias e limitações físicas, como Sipthah (séc. XIII a.C.) e Amon (séc. XI a.C.). Dada a fertilidade das terras e as diferentes possibilidades de trabalho, não é difícil imaginar alternativas para ocupação das pessoas com deficiência no Egito Antigo.

Na Grécia Antiga, particularmente em Esparta, cidade-estado cuja marca principal era o militarismo, as amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com freqüência no campo de batalha. Dessa forma, identifica-se facilmente um grupo de pessoas que adquiriu uma deficiência e permaneceu vivo. Por outro lado, o costume espartano de lançar crianças com deficiência em um precipício tornou-se amplamente conhecido por aqueles que estudaram este tema numa perspectiva histórica.

De acordo com registros existentes, de fato, o pai de qualquer recém-nascido das famílias conhecidas como homoio (ou seja, “os iguais”) deveria apresentar seu filho a um Conselho de Espartanos, independentemente da deficiência ou não. Se esta comissão de sábios avaliasse que o bebê era normal e forte, ele era devolvido ao pai, que tinha a obrigação de cuidá-lo até os sete anos; depois, o Estado tomava para si esta responsabilidade e dirigia a educação da criança para a arte de guerrear. No entanto, se a criança parecia “feia, disforme e franzina”, indicando algum tipo de limitação física, os anciãos ficavam com a criança e, em nome do Estado, a levavam para um local conhecido como Apothetai (que significa “depósitos”). Tratava-se de um abismo onde a criança era jogada, “pois tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto que, desde o nascimento, não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida” (Licurgo de Plutarco apud Silva, 1987, p. 105).

Esta prática deve ser entendida, naturalmente, de acordo com a realidade histórica e social da época. É claro que hoje nos parece algo repugnante e cruel, mas na cidade-estado de Esparta, no ano de 400 a.C., tal conduta “justificava-se” para o bem da própria criança e para a sobrevivência da república, onde a maioria dos cidadãos deveria se tornar guerreiros. Em outros estratos sociais que não os homoio esse tipo de restrição não ocorria, podendo haver a sobrevivência de uma criança “defeituosa”, como no caso dos periecos, dedicados aos trabalhos da lavoura e do gado.

Diferentemente da Grécia Antiga e do Egito, no que diz respeito a pessoas com deficiência, não é fácil localizar referências precisas ao tema na Roma Antiga. Mas existem citações, textos jurídicos e mesmo obras de arte que aludem a essa população. Assim como ocorria em Esparta, o direito Romano não reconhecia a vitalidade de bebês nascidos precocemente ou com características “defeituosas”. Entretanto, o costume não se voltava, necessariamente, para a execução sumária da criança (embora isso também ocorresse). De acordo com o poder paterno vigente entre as famílias nobres romanas, havia uma alternativa para os pais: deixar as crianças nas margens dos rios ou locais sagrados, onde eventualmente pudessem ser acolhidas por famílias da plebe (escravos ou pessoas empobrecidas).

A utilização comercial de pessoas com deficiência para fins de prostituição ou entretenimento das pessoas ricas manifesta-se, talvez pela primeira vez, na Roma Antiga. Segundo o Silva (1987): “cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidos com má formação eram também, de quando em quando, ligados a casas comerciais, tavernas e bordéis; bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes” (Silva, 1987, p. 130). Tragicamente, esta prática repetiu-se várias vezes na história, não só em Roma.

O advento do Cristianismo significou, em diferentes aspectos, uma mudança na forma pela qual as pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela sociedade em geral. É claro que, como alertamos no início desta seção, este não é um processo linear e homogêneo, de maneira que estamos apenas apresentando algumas tendências gerais, sem ter a pretensão de definir com a exatidão histórica, a cada momento, a situação das pessoas com deficiência (que é um grupo heterogêneo entre si).

Feita esta ressalva, podemos afirmar que, de maneira geral, a mudança acima referida deveu-se ao próprio conteúdo da doutrina cristã, que foi sendo difundida a partir de um pequeno grupo de homens simples, num momento em que o Império Romano estava com seu poderio militar e geopolítico consolidado. Entretanto, Silva (1987) chama atenção para o “lamentável estado moral da sociedade romana”, especialmente da nobreza, que demonstrava total falta de preocupação com a proliferação de doenças e o crescimento da pobreza e da miserabilidade dentre boa parte da população.

Nesse contexto, vai ganhando força o conteúdo da doutrina cristã, voltado para a caridade, humildade, amor ao próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e compreensão da pobreza e da simplicidade da vida. Estes princípios encontraram respaldo na vida de uma população marginalizada e desfavorecida, dentro da qual estavam aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais.

A influência cristã e seus princípios de caridade e amor ao próximo contribuíram, em particular a partir do século IV, para a criação de hospitais voltados para o atendimento dos pobres e marginalizados, dentre os quais indivíduos com algum tipo de deficiência. No século seguinte, o concílio da Calcedônia (em 451) aprovou a diretriz que determinava expressamente aos bispos e outros párocos a responsabilidade de organizar e prestar assistência aos pobres e enfermos das suas comunidades. Desta forma, foram criadas instituições de caridade e auxílio em diferentes regiões, como o hospital para pobres e incapazes na cidade de Lyon, construído pelo rei franco Childebert no ano de 542 (Silva, 1987).

Interessante notar que, ao mesmo tempo em que avança um tratamento, ao menos, caridoso em relação aos deficientes, a Igreja Católica continuava reafirmando a impossibilidade de que eles atuassem como padres. Segundo historiadores, “já nos chamados Cânones Apostolorum, cuja antiguidade exata todos desconhecem e que, no entanto, foram elaborados no correr dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles candidatos que tinham certas mutilações ou deformidades” (Silva, 1987, p. 166). Gelásio I, papa que reinou entre 492 a 496, reafirmou a orientação contrária à aceitação de sacerdotes com deficiência, ao afirmar que os postulantes não poderiam ser analfabetos nem ter “alguma parte do corpo incompleta ou imperfeita”.
Em síntese, nos primeiros séculos da Era Cristã houve, pelos registros históricos, mesmo com as restrições acima, uma mudança no olhar em relação não só aos deficientes, mas também às populações humildes e mais pobres. Os hospitais e centros de atendimento aos carentes e necessitados continuaram a crescer, impulsionados muitas vezes pelo trabalho dos bispos e das feiras nos mosteiros.

O período conhecido como Idade Média, entre os séculos V e XV, traz algumas informações e registros (preocupantes) sobre pessoas com deficiência. Continuaram a existir, na maioria das vezes controlados e mantidos por senhores feudais, locais para o atendimento de doentes e deficientes. As referências históricas enfatizam, porém, o predomínio de concepções místicas, mágicas e misteriosas sobre a população com deficiência. Além disso, é preciso lembrar que o crescimento dos aglomerados urbanos ao longo desse período criou dificuldades para a manutenção de patamares aceitáveis de higiene e saúde. Durante muitos séculos, os habitantes das cidades medievais viveram sob a permanente ameaça das epidemias ou doenças mais sérias.

As incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas eram considerados, quase sempre, como sinais da ira divina, taxados como “castigo de Deus”. A própria Igreja Católica adota comportamentos discriminatórios e de perseguição, substituindo a caridade pela rejeição àqueles que fugiam de um “padrão de normalidade”, seja pelo aspecto físico ou por defenderem crenças alternativas, em particular no período da Inquisição nos séculos XI e XII. Hanseníase, peste bubônica, difteria e outros males, muitas vezes incapacitantes, disseminaram-se pela Europa Medieval. Muitas pessoas que conseguiram sobreviver, mas com sérias seqüelas, passaram o resto dos seus dias em situações de extrema privação e quase que na absoluta marginalidade.

No final do século XV, a questão das pessoas com deficiência estava completamente integrada ao contexto de pobreza e marginalidade em que se encontrava grande parte da população, não só os deficientes. É claro que exemplos de caridade e solidariedade para com eles também existiram durante a Idade Média, mas as referências gerais desta época situam pessoas com deformidades físicas, sensoriais ou mentais na camada de excluídos, pobres, enfermos ou mendigos.

O período conhecido como “Renascimento” não resolveu, naturalmente, esta situação de maneira satisfatória. Mas, sem dúvida, ele marca uma fase mais esclarecida da humanidade e das sociedades em geral, com o advento de direitos reconhecidos como universais, a partir de uma filosofia humanista e com o avanço da ciência.

Entre os séculos XV e XVII, no mundo europeu cristão, ocorreu uma paulatina e inquestionável mudança sócio-cultural, cujas marcas principais foram o reconhecimento do valor humano, o avanço da ciência e a libertação quanto a dogmas e crendices típicas da Idade Média. De certa forma, o homem deixou de ser um escravo dos “poderes naturais” ou da ira divina. Esse novo modo de pensar, revolucionário sob muitos aspectos, “alteraria a vida do homem menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião de pobres, dos enfermos, enfim, dos marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemas físicos, sensoriais ou mentais” (Silva, 1987, p. 226).

A partir desse momento, fortalece-se a idéia de que o grupo de pessoas com deficiência deveria ter uma atenção própria, não sendo relegado apenas à condição de uma parte integrante da massa de pobres ou marginalizados. Isso se efetivou através de vários exemplos práticos e concretos. No século XVI, foram dados passos decisivos na melhoria do atendimento às pessoas portadoras de deficiência auditiva que, até então, via de regra, eram consideradas como “ineducáveis”, quando não possuídas por maus espíritos.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, em diferentes países europeus, foram sendo construídos locais de atendimento específico para pessoas com deficiência, fora dos tradicionais abrigos ou asilos para pobres e velhos. A despeito das malformações físicas ou limitações sensoriais, essas pessoas, de maneira esporádica e ainda tímida, começaram a ser valorizadas enquanto seres humanos. Entretanto, além de outras práticas discriminatórias, mantinha-se o bloqueio ao sacerdócio desses indivíduos pela Igreja Católica.

Chegando ao século XIX,  é interessante registrar a forma como o tema das pessoas com deficiência era tratado nos EUA. Neste país, já em 1811, foram tomadas providências para garantir moradia e alimentação a marinheiros ou fuzileiros navais que viessem a adquirir limitações físicas. Assim, desde cedo, estabeleceu-se uma atenção específica para pessoas com deficiência nos EUA, em especial para os “veteranos” de guerras ou outros conflitos militares. Depois da Guerra Civil norte-americana, foi construído, na Filadélfia, em 1867, o Lar Nacional para Soldados Voluntários Deficientes, que posteriormente teria outras unidades.

A assistência e a qualidade do tratamento dado não só para pessoas com deficiência como para população em geral tiveram um substancial avanço ao longo do século XX. No caso das pessoas com deficiência, o contato direto com elevados contingentes de indivíduos com seqüelas de guerra exigiu uma gama variada de medidas. A atenção às crianças com deficiência também aumentou, com o desenvolvimento de especialidades e programas de reabilitação específicos.

No período entre Guerras é característica comum nos países europeus – Grã-Bretanha e França, principalmente, e também nos EUA – o desenvolvimento de programas, centros de treinamento e assistência para veteranos de guerra. Na Inglaterra, por exemplo, já em 1919, foi criada a Comissão Central da Grã-Bretanha para o Cuidado do Deficiente. Depois da II Guerra, esse movimento se intensificou no bojo das mudanças promovidas nas políticas públicas pelo Welfare State. Dado o elevado contingente de amputados, cegos e outras deficiências físicas e mentais,  o tema ganha relevância política no interior dos países e também internacionalmente, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). A “epopéia” das pessoas com deficiência passaria a ser objeto do debate público e ações políticas, assim como outras questões de relevância social, embora em ritmos distintos de um país para o outro.  

Em suma, nesse panorama histórico buscamos resgatar elementos para uma visão geral acerca da temática das pessoas com deficiência. Da execução sumária ao tratamento humanitário passaram-se séculos de história, numa trajetória irregular e heterogênea entre os países (e entre as próprias pessoas com deficiência). Apesar disso, é possível visualizar uma tendência de humanização desse grupo populacional. É verdade que, até nos dias de hoje, existem exemplos de discriminação e/ou maus-tratos, mas o amadurecimento das civilizações e o avanço dos temas ligados à cidadania e aos direitos humanos provocaram, sem dúvida, um novo olhar em relação às pessoas com deficiência.

No próximo texto abordaremos a trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dia Nacional de Luta

Hoje é o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Reproduzo abaixo artigo que escrevi um ano atrás sobre o tema, publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em 21/09/2010.


Dia de Luta e o Direito ao Trabalho
           
As pessoas com deficiência – aquelas com diferentes níveis de limitações físicas, sensoriais ou cognitivas – escolheram o dia 21 de Setembro como o seu Dia Nacional de Luta pela Cidadania. O objetivo de marcar uma data no calendário para lembrar a todos que existimos e somos cidadãos – com direitos e deveres – é manifestar, todos os anos, que precisamos avançar na construção de uma sociedade inclusiva, que entenda as “diferenças” como parte da diversidade humana.

No passado não muito distante, as crianças que nasciam com algum tipo de limitação e as pessoas que adquiriam uma deficiência estavam condenadas a viver à margem da sociedade, limitando-se ao convívio e apoio familiar, vistas como incapazes, até mesmo como um “fardo” para suas famílias. Mal eram ouvidas, não tinham vontade própria e a sociedade, no máximo, lhes concedia benevolência e assistencialismo....pobres coitados!

Era “natural” que alguém nessas condições – com limitações das mais variadas – não precisasse ir à escola, freqüentando, no máximo, instituições especializadas. Trabalhar então, nem pensar. Quase que automaticamente, quando alguém adquiria uma deficiência em função de um acidente de carro ou por arma de fogo, por exemplo, esta pessoa “se aposentava por invalidez”. Em função disso, nos dias atuais, parte das dificuldades das pessoas com deficiência em trabalhar formalmente se deve à baixa escolaridade média deste segmento e aos problemas da legislação trabalhista, pois só pode retornar ao mercado quem escolher abrir mão da aposentadoria.

Mas não é só isso. Neste Dia Nacional de Luta é preciso reafirmar que a maior parte das dificuldades das pessoas com deficiência está na sociedade, não nas limitações físicas, sensoriais ou cognitivas de cada um. Quando nos aproximarmos de um município verdadeiramente acessível – nos meios de transporte, nas ruas, calçadas e meios de comunicação, quando tivermos serviços públicos verdadeiramente inclusivos na educação, saúde e outras áreas, quando os estereótipos e mitos ainda associados às pessoas com deficiência forem desfeitos, aí sim, o direito legítimo e fundamental ao trabalho será respeitado para as pessoas com deficiência.

Em Campinas, temos avançado nesse processo e a organização social e política das próprias pessoas com deficiência contribui muito nesse sentido. Cada vez mais os gestores públicos percebem que não é possível esconder esse “problema”, ignorar as pessoas com deficiência. Mas ainda falta muito. Estimativas recentes revelam que apenas 10% das pessoas com deficiência, em idade ativa, estão trabalhando formalmente. Portanto, precisamos continuar atuando na fiscalização da chamada “Lei de Cotas”, mas também, e principalmente, avançar na construção da sociedade inclusiva, eliminando barreiras físicas e de atitude que impedem o pleno exercício da cidadania pelas pessoas com deficiência.

Vinicius Garcia, economista, diretor da ONG CVI/Campinas e doutorando em Economia Social e do Trabalho na Unicamp.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Recursos para a Saúde

Como tenho falado muito sobre a minha saúde, hoje resolvi escrever um texto sobre a questão da Saúde no Brasil. Com a diminuição do desemprego e a redução da pobreza, a Saúde passa a ser, ao lado da Educação, o tema mais importante e apontado como o grande problema nacional pela maioria dos brasileiros. E com razão, pois basta uma visita a um hospital ou posto de saúde para percebermos o quanto é preciso avançar nessa área.


Antes das dificuldades, vale destacar um ponto bastante positivo: a Constituição de 1988 consolidou a idéia de um sistema público de Saúde no Brasil, com caráter universal, integral e gratuito. Por mais que tenha crescido a saúde complementar ou privada, a concepção de Saúde Pública como um direito do cidadão é obrigação do Estado brasileiro. Do ponto de vista institucional, o SUS – Sistema Único de Saúde – é um brilhante programa, fruto, em boa medida, de décadas de luta do chamado movimento sanitarista nacional. Obviamente, é preciso melhorar a execução do SUS em vários aspectos, mas a visão de que ele deve ser pensando para os quase 200 milhões de brasileiros precisa ser sempre lembrada e reafirmada, até porque apenas ¼ desta população, cerca de 50 milhões, tem acesso a convênios e planos de saúde privados.

Para tratar deste tema, uma constatação inicial é indispensável: o Brasil gasta proporcionalmente muito pouco em Saúde. Numa área que exige recursos crescentes – já que aumenta a expectativa de vida das pessoas e ampliam-se os recursos de tratamento – estamos atrás não só de países referências como a França, Noruega ou Suécia, mas também dos nossos vizinhos sul-americanos, como Argentina, Uruguai e Chile.

Em levantamento recente realizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), observou-se que o Brasil ocupa a 72ª posição no ranking de investimento em saúde, quando a lista é feita com base na despesa estatal por habitante. As diferentes esferas da administração pública brasileira gastam, juntas, uma média anual de US$ 317 por pessoa em Saúde. O desempenho brasileiro é 40% mais baixo do que a média internacional (US$ 517). A liderança do ranking de 193 países pertence a Noruega, cujas despesas anuais (US$ 6,2 mil por habitante) são vinte vezes maiores do que as brasileiras. No chamado G-20, grupo que reúne os países (desenvolvidos e em desenvolvimento) mais ricos do mundo, o desempenho do Brasil, no gasto por habitante, também não é dos melhores. Está na 15ª posição - ganha apenas África do Sul, China, México, Indonésia e Índia.

No orçamento atual, o governo pretende gastar, em todo o ano, R$ 75 bilhões em Saúde. A crítica comum e disseminada, porém equivocada e simplista, afirma que este já é um valor alto e que os problemas são decorrentes do desperdício e da corrupção desenfreada que desvia parte dos recursos da Saúde. Problemas de gestão existem e são sempre bem-vindos mecanismos de controle, técnico e social, para aperfeiçoá-la. Mas somente eles são insuficientes para explicar as fragilidades do setor, como mostram os limitados gastos por habitante em Saúde, apresentados acima.

O mesmo vale para a corrupção. Levantamento recente da CGU – Controladoria Geral da União – mostra que em 9 anos, entre 2002 e 2010, teriam sido desviados quase 8 bilhões de reais em função de irregularidades e desvios na administração pública. Claro que é muito, e na verdade pouco importa a magnitude do desvio (que por si só já é condenável e deve ser punido), mas comparando com os 75 bilhões de reais (num único ano) gastos em Saúde, também não se explicam por aí as debilidades e insuficiências do atendimento público nessa área.

O fato é que, indubitavelmente, gastamos proporcionalmente pouco em Saúde e isso se deve, em boa medida, a gastos excessivos com outras despesas, notadamente juros e encargos da dívida pública. Em 2011, as projeções com tais despesas ultrapassam os R$ 200 bilhões, cerca de 3 vezes o orçamento da Saúde! É o espaço ocupado pelas despesas financeiras que restringe os gastos sociais, não só na Saúde, mas em Educação, Assistência e outras áreas. Mudar a política econômica, particularmente na sua dimensão monetária, como vem sendo esboçado pela Fazenda e Banco Central, é fundamental para que cresçam os gastos que beneficiam milhões de brasileiros, e não só a ínfima parcela de detentores de títulos da dívida pública.

Ao mesmo tempo, é preciso sim regulamentar a Emenda Constitucional 29, que define percentuais mínimos a serem aplicados na Saúde pela União, Estados e municípios, e também criar fontes adicionais e estáveis de financiamento para o setor. Além dos percentuais mínimos, a Emenda 29 é importante por determinar o que é, de fato, gasto em Saúde, coibindo “maquiagens” utilizadas principalmente por governos de Estado, que lançavam despesas variadas – de merenda escolar a saneamento básico – como investimento direto na Saúde pública.

E a questão de uma forma de financiamento adicional, por mais que seja controversa e impopular, precisa ser enfrentada. O governo recuou, mas a aprovação da Contribuição Social da Saúde (CSS) geraria receita adicional de quase R$ 20 bilhões a serem utilizados, obrigatoriamente, em gastos na Saúde (e não desviados para outros fins como ocorreu com a CPMF). A proposta era taxar em míseros 0,10% a movimentação financeira daqueles que recebem acima do teto previdenciário (cerca de R$ 3.500 mensais). Desta forma, mais de 85% da população estaria isenta, e a contribuição para alguém com renda de R$ 5.000 seria de apenas R$ 5,00 por mês. Mas venceu o discurso raivoso da classe média e de boa parte da imprensa, contra o novo imposto, a nova CPMF, etc. E o governo cedeu também porque além da oposição, o PMDB já se colocou contra a criação CSS, que não seria aprovada no Congresso.

Resta a tentativa do Ministério da Saúde em propor aumento dos impostos sobre cigarros, bebidas e automóveis (cujo, digamos, “mau uso” implica em despesas para a Saúde), além das grandes fortunas e remessas de lucros ao estrangeiro. Mas mesmo estas taxações adicionais, que se estima poderiam gerar outros R$ 20 bilhões para a Saúde, não contam com o consenso da maioria dos partidos políticos, permeados, para dizer o mínimo, de interesses privados.

Portanto, meus caros, não existe mágica, para melhorar a Saúde é preciso remunerar melhor os médicos e outros profissionais da área, desenvolver a estrutura de atendimento (construção e reforma de hospitais e postos de saúde), ampliar a distribuição de remédios, a cobertura de procedimentos, os programas de saúde familiar e por aí vai. Gestão eficiente, transparente e racional são indispensáveis – na verdade são obrigação do Estado e dos servidores – mas é preciso mais recursos, aumentando o investimento per capita em Saúde no Brasil para se aproximar dos princípios de universalidade e integralidade previstos na Constituição. 

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Basquete nas Olimpíadas

Esses dias não ando muito bem de saúde. A pressão arterial deu uma variada e as dores no corpo aumentaram. Passei ontem no médico e isso deve estar relacionado com a parte urológica, seja na dificuldade em fazer a sondagem ou no agravamento da infecção urinária. Então é tratar e, assim que possível, reaplicar a toxina botulínica na bexiga/uretra, dando um descanso para o órgão e facilitando o cateterismo. Talvez, em função desta intervenção cirúrgica (simples), eu fique meio afastado do blog nos próximos dias.

Feito o registro aqui no meu “diário virtual”, gostaria também de falar algumas coisas sobre o acontecimento esportivo mais importante do fim de semana: a classificação, depois de 16 anos nas ausências em Sidney, Atenas e Pequim, da seleção brasileira masculina de basquete para as Olimpíadas de Londres em 2012.

Antes de falar propriamente do time e da conquista, quero compartilhar uma opinião ou percepção que foi confirmada na última semana: o basquete é um esporte bem mais atrativo e interessante do que o vôlei e, de maneira geral, os brasileiros se interessam muito mais por este jogo. Do meu ponto de vista, o basquete é um jogo dinâmico, envolvente e emocionante, ao passo que o vôlei, embora tenha sua graça, é mais repetitivo e até monótono em alguns momentos. Pela quantidade de mensagens na semana passada, seja no e-mail ou Facebook, sobre a equipe brasileira de basquete e a possibilidade de classificação para as Olimpíadas, me parece que a maioria também pensa assim.

Nos últimos anos, o Brasil teve um desempenho muito melhor no vôlei do que no basquete, o que atrai torcida, fãs, publicidade e investimentos. Mas, jogo por jogo, o basquete é mais legal e, historicamente, sempre foi o segundo esporte no Brasil em termos de praticantes e interesse, ficando atrás só do futebol. Além disso, nas gerações anteriores foi também um esporte de conquistas e tradição olímpica, com vitórias em Mundias e cinco medalhas olímpicas (duas de bronze para o masculino e duas de prata no feminino, sendo a primeira em Atlanta-1996, no inesquecível time de Paula e Hortência).

Bom, mas falando da seleção atual, creio que o histórico recente de decepções gerou avaliações negativas precipitadas sobre o time. É verdade que na primeira fase do Pré-Oímpico disputado na Argentina, o time não inspirou confiança ao vencer, com dificuldades, Cuba, Venezuela e Canadá, e perder para República Dominicana. Na segunda fase, porém, vitórias tranqüilas e animadoras sobre Uruguai e Panamá deram o embalo para o primeiro feito desta seleção: derrotar a Argentina, com suas estrelas, jogando lá. A confiança aumentou muito e, inesperadamente, ganhamos um grande pivô: Rafael Hettsheimer, de 25 anos, que jogou muito contra a Argentina e se firmou no resto do torneio. Atropelamos Porto Rico na seqüência, o que também não acontecia faz tempo, e a classificação veio num jogo equilibrado, duro, mas consistente contra a República Dominicana (e seus três jogadores que atuam na NBA).

Em relação ao time, tivemos um bom quinteto titular: Marcelinho Huertas, Alex, Marquinhos, Guilherme Giovanoni e Tiago Splitter. Este último, por ironia nosso único jogador de NBA que estava presente, não foi muito bem no Pré-Olímpico, abrindo espaço para o Rafael Hettsheimer. Vale mencionar também Marcelinho Machado, 36 anos, com cinco eliminações jogando pela seleção em Pré-Olímpicos anteriores, e que finalmente consegue realizar o sonho de classificar o país – e merece ser convocado para as Olimpíadas!

Para terminar, a questão que será debatida até as vésperas dos jogos é o que fazer com os jogadores brasileiros que atuam na NBA e não jogaram o Pré-Olímpico: Varejão, Nêne e Leandrinho. Quanto ao primeiro, seria uma injustiça não chamá-lo porque ele só não foi para Argentina em função de uma contusão. Quanto ao Nêne e ao Leadrinho, no impulso a vontade é desconsiderá-los desde já, mas esta é uma prerrogativa da comissão técnica, liderada pelo argentino Rubem Magnano (que foi brilhante, principalmente por armar uma ótima defesa no time). Acho prematuro fechar o grupo um ano antes das Olimpíadas, e temos tempo para reavaliar o elenco, inclusive no que diz respeito ao comportamento dos jogadores daqui para frente.

O fato é que, finalmente, o basquete masculino brasileiro voltou à elite do esporte. Já estão classificados para as Olimpíadas, a Grã-Bretanha (por ser o país sede), os EUA (últimos campeões mundiais), Argentina e Brasil (representando as Américas), a Austrália (Oceania) e a Tunísia (África). Restam seis vagas: duas para Europa, uma para Ásia e outras três a serem definidas no Pré-Olímpico Mundial. Na Europa, a disputa ocorre nessa semana e os favoritos são: Espanha, França, Lituânia, Sérvia, Grécia e Rússia.

São todos times muito fortes, mas tirando os EUA (se forem com um time de ponta), a disputa pelas medalhas está em aberto.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

7 de Setembro

Aproveito a véspera da data para fazer algumas rápidas reflexões sobre o nosso país. É curioso, ao mesmo tempo em que milhões se mobilizam para torcer pela seleção na Copa do Mundo ou por um atleta brasileiro nas Olimpíadas, é extremamente comum ouvirmos gente falando muito mal do Brasil. Somos brasileiros, com muito orgulho, como diz a “música”, ou no fundo invejamos os ditos países de primeiro mundo?

O tema daria um longo debate e eu não tenho capacidades para fazer análise tão complexa (sociológica). Quero apenas registrar algumas observações. Para variar, acho que vou contra o senso comum e a opinião da maioria, pois acredito que somos, simultaneamente, ufanistas na torcida e pessimistas, em excesso, na crítica ao país.

Me irrita a apelação feita pela imprensa esportiva quando joga a seleção ou quando um time (ou atleta) brasileiro está competindo. As transmissões, a começar pelos narradores e por vezes contaminando os comentaristas, viram um show de patriotismo vulgar, enaltecendo virtudes, algumas imaginárias, dos representantes nacionais e menosprezando os adversários, além de sermos, quase sempre, vítimas da arbitragem. Esta forma de ver o esporte dissemina-se para a população. Até hoje, muitos têm convicção de que perdemos a final da Copa do Mundo de 1998, para a França, porque houve algum tipo de armação ou “complô internacional”; não porque o outro time, simplesmente, jogou melhor (ajudado, é verdade, pela crise emocional do então jovem Ronaldo).

Ao mesmo tempo, fora da esfera esportiva, detesto generalizações do tipo: “nesse país, nada funciona, todo mundo é ladrão, os políticos são bandidos, etc.”. Este sentimento negativo, também repercutido e ampliado por setores da imprensa, infelizmente, é muito comum. Trata-se de uma reclamação nervosa e vazia, não de uma indignação positiva, construtiva. De certa forma, pensar assim, além de ser algo simplista, avaliza as condutas inapropriadas e os problemas reais nas nossas cidades, nos serviços públicos e em outras áreas. Se nada funciona, porque reclamar de algo específico? Se todos são corruptos, tanto faz mais um ou menos um.


Enfim, sei que misturei nessa conversa assuntos que têm dimensões e pesos diferentes. O futebol e o esporte representam temas bem menos relevantes do que as condições sociais ou o sistema político do país. Mas como estas são questões que ocupam meus pensamentos, fiz esta comparação “desproporcional” para tratar de comportamentos e atitudes que me incomodam. Ás vezes, estou vendo uma competição e, com a concordância do meu pai, que também se irrita, desligamos o som para deixarmos de ouvir o chato do narrador que torce pelo brasileiro ao invés de fazer o seu trabalho: narrar. E ás vezes me canso de receber mensagens ou ouvir gente que só reclama do país, só enxerga problemas e, no fundo, está louco para viver em outro lugar.

No dia em que se comemora nossa independência, creio que poderíamos tentar equilibrar as coisas, sendo mais realistas tanto no campo esportivo quanto na avaliação do cenário social e político atual. Não temos, por natureza, os melhores jogadores de futebol do mundo. E não somos, por definição, um país fadado à corrupção disseminada, ao mau funcionamento dos serviços públicos ou à marginalização social dos seus cidadãos.