No texto anterior, buscou-se recuperar marcos históricos da trajetória das pessoas com deficiência na História Mundial. Na postagem abaixo, o mesmo é realizado para a História do Brasil. Boa leitura!
Trajetória das
pessoas com deficiência na História do Brasil: “Caminhando em silêncio”
Os
arquivos da História brasileira registram referências variadas a “aleijados”,
“enjeitados”, “mancos”, “cegos” ou “surdos-mudos”. No entanto, assim como
ocorria no continente europeu, a quase totalidade dessas informações ou
comentários está diluída nas menções relativas à população pobre e miserável.
Ou seja, também no Brasil, a pessoa deficiente foi incluida, por vários
séculos, dentro da categoria mais ampla dos “miseráveis”, talvez o mais pobre
entre os pobres (Silva, 1987).
Figueira
(2008) realiza trajetória semelhante àquela de Silva (1987), mas concentra-se
na história do Brasil. Figueira (2008) propõe que seu livro marque uma
introdução à história das pessoas com deficiência no Brasil, definindo também
sua tese principal, com a qual concordamos integralmente: “(...) as questões
que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil – por exemplo, mecanismos de
exclusão, políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade, oportunismo,
dentre outras – foram construídas culturalmente” (grifos nossos. Figueira,
2008, p.17). Assim sendo, é importante termos em mente que questões culturais
demoram a ser revertidas, mas este é o movimento que tem sido priorizado pelas
pessoas com deficiência nas últimas décadas.
Tendo
em vista essa perspectiva geral, Figueira (2008) inicia seu percurso com os
primeiros “ecos históricos” da formação do Brasil. Através deles, é possível
identificar aspectos importantes, como a política de exclusão ou rejeição das
pessoas com algum tipo de deficiência praticada pela maioria dos povos
indígenas, os maus-tratos e a violência como fatores determinantes da
deficiência nos escravos africanos, e como, desde os primeiros momentos da
nossa história, consolidou-se a associação entre deficiência e doença.
Sobre
o primeiro aspecto, são reproduzidos relatos históricos que atestam condutas,
práticas e costumes indígenas que significavam a eliminação sumária de crianças
com deficiência ou a exclusão daquelas que viessem a adquirir algum tipo de
limitação física ou sensorial. Cabe destacar que não podemos julgar tais
práticas com os olhos de hoje, o que levaria a uma análise pejorativa e até
mesmo preconceituosa em relação à população indígena.
Mas,
dito isso, deve-se reconhecer que, entre as populações indígenas que habitavam
o território que viria a ser o Brasil, predominou a prática de exclusão das
crianças e abandono dos que adquiriam uma deficiência. Tais costumes não
diferem muito daqueles também observados em outros povos da História Antiga e
Medieval, onde a deficiência, principalmente quando ocorria no nascimento de
uma criança, “não era vista com bons olhos”, mas sim entendida como um mau
sinal, castigo dos deuses ou de forças superiores.
As
crendices e superstições associadas às pessoas com deficiência continuaram a se
reproduzir ao longo da história brasileira. Assim como os curandeiros
indígenas, os “negro-feiticeiros” também relacionavam o nascimento de crianças
com deficiência a castigo ou punição. Na verdade, mesmo para doutrinas
religiosas contemporâneas, até as deficiências adquiridas são vistas como
previamente determinadas por forças divinas ou espirituais. Não vamos explorar
essa questão neste artigo, mas vale o registro desse aspecto que, de certa
forma, é uma contradição com o paradigma social e dos direitos humanos com que
se tem tratado esse assunto.
Longe
de ser um mal sobrenatural, a deficiência física ou sensorial nos negros
escravos decorreu, inúmeras vezes, dos castigos físicos a que eram submetidos.
De início, a forma como se dava o tráfico negreiro, em embarcações superlotadas
e em condições desumanas, já representava um meio de disseminação de doenças
incapacitantes, que deixavam seqüelas e não raro provocavam a morte de um
número considerável de escravos.
Os
documentos oficiais da época não deixam dúvidas quanto à violência e crueldade
dos castigos físicos aplicados tanto nos engenhos de açúcar como nas primeiras
fazendas de café. O rei D. João V, por exemplo, em alvará de 03 de março de
1741, define expressamente a amputação de membros como castigo aos negros
fugitivos que fossem capturados. Uma variedade de punições, do açoite à
mutilação, eram previstas em leis e contavam com a permissão (e muitas vezes
anuência) da Igreja Católica. Talvez o número de escravos com deficiência só
não tenha sido maior porque tal condição representava prejuízo para o seu
proprietário, que não podia mais contar com aquela mão-de-obra.
Os
colonos portugueses, desde o momento em que chegaram ao território descoberto
por Cabral, sofreram com as condições climáticas, como o forte calor, além da
enorme quantidade de insetos. Estas características tropicais repercutiram na
saúde e bem-estar dos europeus, sendo que “algumas dessas enfermidades de
natureza muito grave chegaram a levá-los a aquisição de severas limitações
físicas ou sensoriais” (Figueira, 2008, p. 55). Observando a formação da
população no Brasil Colonial, o historiador da medicina Licurgo Santos Filho
acentua que: “tal e qual como entre os demais povos, e no mesmo grau de
incidência, o brasileiro exibiu casos de deformidades congênitas ou adquiridas.
Foram comuns os coxos, cegos, zambros e corcundas” (Santos Filho apud Figueira,
2008, p. 56). As condições de tratamento da maioria das enfermidades não eram
adequadas e continuariam assim por várias décadas.
Já
no século XIX, a questão da deficiência aparece de maneira mais recorrente em
função do aumento dos conflitos militares (Canudos, outras revoltas regionais e
a guerra contra o Paraguai). O general Duque de Caixas externou ao Governo
Imperial suas preocupações com os soldados que adquiriam deficiência. Foi então
inaugurado no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1868, o “Asilo dos Inválidos da
Pátria”, onde “seriam recolhidos e tratados os soldados na velhice ou os
mutilados de guerra, além de ministrar a educação aos órfãos e filhos de
militares” (Figueira, 2008, p. 63). Apesar da intenção humanitária, as
referências históricas expressam um quadro de extrema precariedade no
funcionamento da instituição durante o período imperial . Mesmo assim, e
certamente com alguma melhora nas condições de atendimento, o Asilo Inválidos
da Pátria permaneceu funcionando por 107 anos, somente sendo desativado em 1976.
O
avanço da medicina ao longo do século XX trouxe consigo uma maior atenção em
relação aos deficientes. A criação dos hospitais-escolas, como o Hospital das
Clínicas de São Paulo, na década de 40, significou a produção de novos estudos
e pesquisas no campo da reabilitação. Nesse contexto, como não poderia ser
diferente, havia uma clara associação entre a deficiência e a área médica. Na
verdade, ainda em meados do século XIX, com a criação do Imperial Instituto dos
Meninos Cegos (1854), ficava explícita uma relação entre doença e deficiência
que, sem exagero algum, permanece até os dias atuais (em que pese a luta do
movimento organizado das pessoas com deficiência a partir de 1981 pelo chamado
“modelo social” para tratar dessa questão, em oposição ao modelo
“médico-clínico”).
O
fato é que, ao longo de nossa história, assim como ocorreu em outros países, a
deficiência foi tratada em ambientes hospitalares e assistenciais. Ao estudar o
assunto, os médicos tornavam-se os grandes especialistas nessa seara e passavam
a influenciar, por exemplo, a questão educacional das pessoas com deficiência,
tendo atuação direta como diretores ou mesmo professores das primeiras
instituições brasileiras voltadas para a população em questão.
O
grau de desconhecimento sobre as deficiências e suas potencialidades, porém,
permaneceu elevado na primeira metade do século XX, o que se percebe pelo
número considerável de pessoas com deficiência mental tratadas como doentes
mentais. A falta de exames ou diagnósticos mais precisos resultou numa história
de vida trágica para milhares de pessoas nesta condição, internadas em
instituições e completamente apartadas do convívio social.
Antes
da existência das instituições especializadas, as pessoas com deficiência
tiveram, em grande medida, sua trajetória de vida definida quase que
exclusivamente pelas respectivas famílias. O Imperial Instituto dos Meninos
Cegos (1854), que citamos acima, marca o momento a partir do qual a questão da
deficiência deixou de ser responsabilidade única da família, passando a ser um
“problema” do Estado. Mas não enquanto uma questão geral de política pública,
pois o que ocorreu foi a transferência dessa responsabilidade para instituições
privadas e beneficentes, eventualmente apoiados pelo Estado. Estas instituições
ampliaram sua linha de atuação para além da reabilitação médica, assumindo a
educação das pessoas com deficiência. Até 1950, segundo dados oficiais, havia
40 estabelecimentos de educação especial somente para deficientes intelectuais
(14 para outras deficiências, principalmente a surdez e a cegueira).
Na
década de 40, cunhou-se a expressão “crianças excepcionais”, cujo significado
se referia a “aquelas que se desviavam acentuadamente para cima ou para baixo
da norma do seu grupo em relação a uma ou várias características mentais,
físicas ou sociais” (Figueira, 2008, p. 94). O senso comum indicava que estas crianças
não poderiam estar nas escolas regulares, do que decorre a criação de entidades
até hoje conhecidas, como a Sociedade Pestallozzi de São Paulo (1952) e a
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE do Rio de Janeiro (1954).
Essas entidades, até hoje influentes, passaram a pressionar o poder público
para que este incluísse na legislação e na dotação de recursos a chamada
“educação especial”, o que ocorre, pela primeira vez, na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – Lei 4.024, de 20 de dezembro de 1961.
Felizmente,
percebeu-se com o tempo que, assim como acontecia em outros países, as pessoas
com deficiência poderiam estar nos ambientes escolares e de trabalho comuns a
toda população, freqüentando também o comércio, bares, restaurantes ou prédios
públicos, enfim, não precisariam estar sempre circunscritas ao espaço familiar
ou das instituições especializadas. Esta percepção está refletida na expansão
de leis e decretos sobre os mais variados temas a partir, principalmente, da
década de 80, como discutiremos mais à frente.
A
nossa trajetória histórica, quando as pessoas com deficiência eram “ignoradas”
ou “caminhavam em silêncio”, se encerra no ano de 1981, declarado pela ONU como
Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD). De acordo com Figueira (2008):
“Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio,
excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da
Pessoa Deficiente -, tomando consciência de si, passou a se organizar
politicamente. E, como conseqüência, a ser notada na sociedade, atingindo
significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância” (grifos
nossos. Figueira, 2008, p. 115).
A
palavra-chave do AIPD foi “conscientização”, tendo sido organizadas várias
manifestações para alertar sobre a própria existência e os direitos das pessoas
com deficiência, contra a invisibilidade. Em que pesem as críticas e relatos
eventuais de descontentamento, o fato é que, para a maioria daqueles que
estiveram envolvidos, o Ano Internacional cumpriu o seu papel de chamar a
atenção da sociedade para a questão da deficiência. Como afirma Figueira: “boa
ou má, a situação das pessoas com deficiência começou a ser divulgada a partir
de 1981. Inclusive, elas mesmas começaram a tomar consciência de si como
cidadãos, passando a se organizar em grupos ou associações” (Figueira, 2008, p.
119).
Em
outras palavras, é claro que anteriormente tivemos inúmeros casos de êxito
individual de pessoas com deficiência, mas 1981 marca um reconhecimento mútuo e
coletivo da situação em que se encontravam muitos portadores de deficiência. Um
mundo “obscuro” ou “ignorado”, nas palavras de publicações da época, não
poderia mais ser escondido da sociedade e do poder público, continuando somente
como “um peso ou fardo individual e/ou familiar”.
Portanto,
o percurso histórico das pessoas com deficiência no Brasil, assim como ocorreu
em outras culturas e países, foi marcado por uma fase inicial de eliminação e
exclusão, passando-se por um período de integração parcial através do
atendimento especializado. Estas fases deixaram marcas e rótulos associados às
pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou doentes
crônicas. Romper com esta visão, que implica numa política meramente
assistencialista para as pessoas com deficiência, não é uma tarefa fácil. Mas,
com menor ou maior êxito, isso foi feito com o avanço da legislação nacional
sobre este tema, contando agora com a contribuição direta das próprias pessoas
com deficiência.
Este
movimento culmina com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD) pelo Brasil, conferindo-lhe status de emenda
constitucional. A participação direta e efetiva dos indivíduos com limitações
físicas, sociais e cognitivas na elaboração da Convenção (e posteriormente na
sua internalização) não foi fruto do acaso, mas decorre do paulatino
fortalecimento deste grupo populacional, que sobreviveu e passou a exigir
direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
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Referências
bibliográficas:
Epopéia
Ignorada – A
História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje, Otto Marques da Silva, 1987.
Caminhando
em Silêncio – Uma
introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, Emílio Figueira, 2008.