Manifestação Pública – Contra a flexibilização
da “Lei de Cotas”
No dia 15 de Janeiro último, o jornal Folha de São Paulo, no caderno
“Mercado”, página B4, publicou a matéria “STF poderá rever regras para
deficientes”. Alguns dias depois, o mesmo jornal, em 23 de Janeiro, assinou o
editorial “Barreira Burocrática”, caderno “Poder”, página A2, tratando do tema
(textos originais em anexo).
Não é de hoje que parte mais atrasada do setor empresarial vem defendendo flexibilizações na chamada “Lei de Cotas” (Lei 8.213/91, posteriormente regulamentada), que reserva um percentual de 2% a 5% das vagas nas empresas com cem ou mais empregados a serem preenchidas por pessoas com deficiência e reabilitados (Lei em anexo).
O conteúdo da matéria e do editorial mencionados acima buscam dar respaldo para o processo de flexibilização da Lei, em sintonia com o discurso dessa parcela do empresariado. Assim sendo, nos parece de suma importância apresentar, de maneira pontual e objetiva, argumentos contrários a este movimento, oriundos da experiência prática de órgãos públicos, sindicatos, empresas cumpridoras da Lei, associações, ONGs, ativistas sociais, enfim, pessoas com e sem deficiência que atuam cotidianamente com esta questão.
Além disso, os argumentos por nós apresentados têm seu embasamento na legislação vigente e, principalmente, na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006, ratificada pelo Brasil em 2008 com o status de emenda constitucional e promulgada pelo Executivo Federal por meio do Decreto 6.949/09.
Os seguintes aspectos nos chamaram a atenção e provocaram questionamentos:
1. Embora a matéria fale explicitamente que “o Superior Tribunal Federal (STF) votará nos próximos meses uma ação que poderá instituir a flexibilização das regras para a contratação de deficientes pelas empresas”, não há referências a uma única fonte do próprio Tribunal, nem maiores informações sobre o trâmite desta ação, como o Ministro Relator responsável.
2. Deve-se
reafirmar que o papel primordial do STF, no sentido contrário, é defender a
Constituição e o direito ao trabalho das pessoas com deficiência, grupo
populacional historicamente discriminado. O acesso ao trabalho é direito
constitucional previsto no Art. 27 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência supracitada;
3. Explica-se na matéria que
a ação é movida pelo grupo Pão de Açúcar, que teria sido autuado pelo
Ministério Público do Trabalho (MPT) por descumprimento da Lei. Segundo a
matéria: “a empresa diz ter cumprido a lei e que foi multada porque só
consideraram como deficientes aqueles com atestado do INSS”;
4. Pelo texto, se entende
que o MPT considerou como pessoas habilitadas a fazer jus à Lei de Cotas só
aqueles com certificado do INSS. Tal afirmação é imprecisa e não condiz com
os procedimentos legais ou regimentais para comprovação das condições que
definem aqueles que são considerados para fins de cumprimento da Lei. Vejamos:
De acordo com o Decreto
Federal 3.298/99, art. 36, que disciplinou a “Lei de Cotas”, observa-se que as
vagas reservadas a serem preenchidas se referem:
a) às pessoas portadoras de
deficiência habilitadas ou
b)
aos beneficiários da
Previdência Social reabilitados
Para
a identificação de tais pessoas, além do art. 4° deste Decreto (alterado pelo Decreto
5.296/04), os parágrafos
1° a 5° esclarecem que:
1º) considera-se pessoa com deficiência habilitada:
a) aquela que esteja
capacitada para o exercício de uma função, ainda que não submetida ao processo
de habilitação ou reabilitação; desta forma, a pessoa com deficiência não possui certificado de
conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido
pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS; Neste caso, comprova-se tal
condição simplesmente por meio de laudo médico,
que pode ser emitido por médico do trabalho da empresa ou qualquer outro
médico.
b) aquela que esteja
capacitada para o exercício de uma função submetida ao processo de habilitação
ou reabilitação; desta forma, a pessoa com deficiência possui certificado de conclusão
de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo
Instituto Nacional do Seguro Social – INSS.
2º)
considera-se pessoa reabilitada
aquela submetida ao processo de reabilitação profissional e com certificado de
reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do
Seguro Social - INSS.
5. Em resumo, para a grande
maioria dos casos, as pessoas com deficiência que fazem jus às cotas comprovam
sua condição apenas com o laudo
médico. Eventualmente, se passaram por processos de habilitação ou
reabilitação profissional, as pessoas com deficiência terão também o
certificado fornecido pelo INSS. Mas este é somente exigido obrigatoriamente
para o segundo grupo de pessoas beneficiado pela Lei: os reabilitados.
6. Talvez o verdadeiro
argumento da ação do grupo Pão de Açúcar, em consonância com setores
empresariais, esteja explícito no seguinte trecho da matéria: “a legislação
também define os tipos de deficiência, excluindo as consideradas "mais
leves" - diferenciação que as empresas consideram
"inconstitucional";
7. É preciso deixar claro
que os parâmetros que balizam as cotas – Decretos Federais 3.298/99 e 5.296/04
– não excluem “deficiências leves”. Eles apenas caracterizam aquelas
condições nas quais, a partir de uma significativa limitação funcional, há
desvantagens competitivas e dificuldades adicionais para o pleno acesso ao
mercado de trabalho. Sem estes critérios, corre-se o risco de banalizar este
instrumento de ação afirmativa;
8. O pior é que, na
seqüência, a “inconstitucionalidade” acima mencionada é apresentada como
responsável pela queda no número de ocupações formais exercidas por pessoas com
deficiência, de 348 mil em 2007 para 306 mil em 2010 (fonte RAIS, Ministério do
Trabalho Emprego).
9. O que não consta na
matéria, mas é percebido claramente por aqueles que atuam nesta área, é a
“preferência” de parte das empresas por pessoas com deficiências “mais leves”, dificultando
o acesso, por exemplo, de cadeirantes ou pessoas cegas nos ambientes de
trabalho; (ou seja, há uma dupla discriminação para pessoas com deficiências
mais “graves”);
10. Além das “questões
burocráticas” e dos “problemas da legislação”, a matéria abre espaço para outra
queixa freqüente de parte do empresariado que não cumpre a Lei: “a falta de
pessoas com deficiência e de mão-de-obra qualificada para o preenchimento das
vagas”;
11. Embora se reconheça que
há um histórico de exclusão escolar responsável por um passivo na formação das
pessoas com deficiência, este processo está sendo claramente revertido. Dados
do MEC apontam para o aumento no número de matrículas e crescente escolaridade
das pessoas com deficiência. Existem também iniciativas – no chamado “Sistema
S”, órgãos públicos e empresas privadas – no sentido de promover capacitação
profissional e maior qualificação para este segmento (como também para o
conjunto da população, cuja qualificação média também não é adequada).
O editorial “Barreira
Burocrática”, mesmo que numa forma mais amena e cuidadosa, segue o mesmo estilo
“conservador e pró-empresarial” da matéria, reproduzindo equívocos no sentido de respaldar o seu conteúdo e a intenção clara de
flexibilizar a “Lei de Cotas”.
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Realizada esta avaliação
crítica do material jornalístico, concluímos este Manifesto com uma síntese das nossas posições sobre o tema:
a) É precipitado propor
flexibilizar a “Lei de Cotas” sem que se conheça a fundo o universo das pessoas
com deficiência e/ou com limitação funcional a ser divulgado pelo IBGE nos
resultados do Censo de 2010 (até o presente momento, se conhece apenas os dados
agregados absolutos);
b) No mesmo sentido, é
prematuro e perigoso falar em inclusão de “deficiências leves” nas cotas quando
ainda está em curso um estudo demandado pela Secretaria Nacional dos Direitos
das Pessoas com Deficiência (SNDP), vinculado à Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, junto ao IETS (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), com o
objetivo de aperfeiçoar a classificação das deficiências;
c) A “Lei de Cotas”, da forma como está hoje, não
é a panacéia para resolver a questão da inclusão das pessoas com deficiência no
trabalho, mas pior seria sem ela. Não queremos depender eternamente deste
instrumento, mas ele se mostrou necessário e ainda é imprescindível para
consolidar a cultura de inclusão e valorização da diversidade nos ambientes de
trabalho;
d) Reduzir o percentual das
cotas, incluir novos grupos ou criar fundos de contribuição para não contratar
trariam perdas para o já precário processo de inserção no mercado de trabalho,
penalizando as pessoas com maior limitação funcional, justamente aquelas para
as quais foi pensado este instrumento de ação afirmativa.
e) Qualquer discussão sobre
mudanças na Lei deve passar pelo controle social de instâncias como o CONADE
(Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência), em sintonia fina
com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
As pessoas abaixo assinadas endossam as
colocações do Manifesto e pedem a gentileza para sua divulgação.
Anahi
Guedes de Mello, cientista social, é uma das
fundadoras do Centro de Vida Independente de Florianópolis (CVI-Florianópolis).
Antonio Santos Pereira - Membro do CVI Bahia e
do Perspectivas em Movimento - Inclusão Artístico e
Cultural da Pessoa com Deficiência.
Carlos
Aparício Clemente – Vice Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de
Osasco e Região e Coordenador do Espaço da Cidadania.
Fernando Antonio
Pires Montanari – Economista.
Ida Célia Palermo - Consultora
de Inclusão Social, Presidente do CVI-Campinas.
Izabel
Maria Madeira de Loureiro Maior - médica
fisiatra e docente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, integrante do Núcleo Interdisciplinar de Acessibilidade e Inclusão da
UFRJ, especialista e consultora na área de políticas públicas de inclusão das
pessoas com deficiência. Ex-Secretária nacional da Secretaria Nacional de
Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República.
Katia
Fonseca, Jornalista, ativista de Direitos Humanos,
conselheiro-consultiva
consultiva do CVI-Campinas.
consultiva do CVI-Campinas.
Lilia
Pinto Martins – Psicóloga clínica, com experiência profissional no campo da
psicologia da reabilitação. Uma das fundadoras e atual presidente do CVI-Rio.
Marcio Castro de Aguiar, Fisioterapeuta, Cego, ativista na
defesa dos Direitos
das Pessoas com Deficiência, fundador do CVI-Niterói.
das Pessoas com Deficiência, fundador do CVI-Niterói.
Marta Gil – socióloga, consultora na
área da Deficiência e Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de
Estudos e Pesquisas.
Melissa
Bahia – Consultora na área de Empregabilidade para Pessoas com
Deficiência
Roseli
Bianco Piantoni – conselheira do CMPD/Campinas –
Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência; Conselho Local de
Saúde do CRR e Vice Presidente do CVI Campinas;
Silvia Pereira de Brito – assistente social,
Mestre em Serviço Social pela PUC-SP.
Vinicius Gaspar Garcia – economista e pesquisador,
co-fundador do CVI-Campinas e diretor de relações institucionais do CVI-Brasil.
Centro de Referência em
Reabilitação – Prefeitura Municipal de Campinas
Centro de Vida Independente
de Campinas (CVI-Campinas)
Conselho Nacional dos
Centros de Vida Independente (CVI-Brasil)
Vinicius, assino embaixo.
ResponderExcluirMaria Eduarda Silva Leme
Psicóloga, doutora em Educação-Unicamp
Coordenou o programa de atenção à pessoa com deficiência no INSS Campinas
Vinicius adorei o manifesto, concordo com tudo, meu trabalho de conclusão foi sobre garantias dessa lei de cotas, que as empresas estão pagando multa, aqui no sul não é diferente. Parabéns, continue assim.
ResponderExcluirAssinam também: Adriana Dias, Pessoa com Deficiência Física e Osteogenesis Imperfecta e Coordenadora do GT permanente de Deficiência e acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia
ResponderExcluirInstituto Baresi
Assino embaixo.
ResponderExcluirGuirlanda Benevides
Economista, especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo (UNICAMP)e responsável pelo Programa de Inclusão de Pessoas com deficiência no Mercado de Trabalho/MTE/GRTE-CAMPINAS.
Prezadas Eduarda, Adriana e Guirlanda,
ResponderExcluirmuito obrigado pelo apoio! Estamos juntos nesta luta! Assinaturas registradas.
Abraços
Olá Liza Cenci,
ResponderExcluirobrigado! Verdade, os problemas parecem ser os mesmos em todas as regiões do país. Fiquei interressado no seu trabalho de conclusão de curso. Se puder, me mande.
Atenciosamente,
Vinicius.
Vi, também assino, como empresária, artista plástica e portadora de deficiência auditiva.
ResponderExcluirLegal Fabi, obrigado pelo apoio! Lhe manterei informada sobre os desdobramentos do manifesto.
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