segunda-feira, 25 de abril de 2011

Lei de Cotas como panacéia

Quando se discute o acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, quase que automaticamente se fala também na chamada “Lei de Cotas”. Esta “Lei” garante um percentual de vagas, de 2% a 5%, a serem ocupados pelas pessoas com deficiência nas empresas com 100 ou mais funcionários. Em minha opinião, de forma equivocada, ela é vista por muitos como panacéia, como solução ou “cura definitiva” para o problema da baixa participação deste segmento populacional no mercado de trabalho formal no Brasil.

Não há dúvidas de que se trata de um instrumento de ação afirmativa importante, mas é preciso fazer algumas ponderações. Em primeiro lugar, a chamada “Lei de Cotas” é, na verdade, um artigo (93) isolado de uma legislação bem mais ampla, a Lei 8.213 de 1991, que trata do regime geral da Previdência Social.
Ao longo dos últimos 20 anos, assim como se conserta um carro em movimento, foram sendo regulamentadas por meio de Decretos e portarias ministeriais a execução e o processo de fiscalização da “Lei”. Corrijam-me os advogados se eu estiver errado, mas na prática não há uma legislação consolidada que discipline esta ação afirmativa, dando margem, inclusive, para questionamentos e ações na Justiça que versam sobre sua aplicação.
Outro aspecto central: embora tenha “forçado o debate” sobre o acesso das pessoas com deficiência ao trabalho (o que é positivo) – e conseguido impor um ritmo relativamente crescente de contratações – a “Lei de Cotas” é claramente insuficiente para efetivar plenamente o acesso desta população ao trabalho formal.
Recentemente, divulgou-se que apenas 25% das vagas destinadas às pessoas com deficiência no país estão sendo ocupadas (fonte: http://www.ecidadania.org.br), já que das quase 890 mil vagas que deveriam ser preenchidas se as cotas fossem cumpridas na íntegra, cerca de 230 mil estavam de fato sendo exercidas por este grupo populacional em Dezembro de 2010, no Brasil.
É sem dúvida um dado preocupante, mas creio que as atenções e energias daqueles que lidam com esta temática deveriam ser também utilizadas para outra estatística: no Brasil, apenas 5% das pessoas com deficiência está no mercado de trabalho formal, indicando que a imensa maioria delas, 95%, exerce ocupações informais e precárias, recebe benefícios, pensões e aposentadorias, e/ou depende do suporte familiar
Detalhando um pouco mais estes números, a partir dos dados do Censo de 2000, realizou-se um filtro que separou as pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas mais severas, numa faixa etária de 15 a 59 anos. Este contingente, em tese, faz jus à “Lei de Cotas”, compondo um universo de 6 milhões de pessoas. Apenas cerca de 300 mil, equivalente aos 5% já citados, pelos dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) entre 2007 e 2009, estão no mercado de trabalho formal.
A estimativa populacional, que apontou para 6 milhões de pessoas com deficiência nos termos acima definidos,  reforça também o quanto é insuficiente a “Lei de Cotas”. Mesmo que ela saísse dos 25% de efetividade atuais e passasse a ser cumprida na sua totalidade, indo para 100%, as 890 mil vagas potenciais ainda deixariam de fora mais do que 5 milhões de pessoas com deficiência, se dependêssemos só da “Lei”.  
Por tudo isso, creio que este instrumento é “super-valorizado” e acaba por tirar o foco de outras ações tão ou mais significativas e necessárias, tais como: a) melhoria das condições de acessibilidade nos municípios; b) revisão da legislação trabalhista no que se refere à aposentadoria por invalidez; c) intensificação dos processos de formação escolar e capacitação das pessoas com deficiência; d) desmistificação de estereótipos ainda associados a este contingente populacional.
Eventuais aperfeiçoamentos na “Lei de Cotas” podem até ser feitos, mas não “com o carro andando” e sem que se leve em conta esta perspectiva mais ampla. Até lá, não se justificam “flexibilizações” e o Ministério do Trabalho e Emprego tem que continuar exercendo seu papel de fiscalizador. O cenário não está bom com a “Lei de Cotas”, mas pior ainda seria sem ela.
Entretanto, a nossa “utopia possível” é que no futuro tal legislação deixe de existir, havendo a incorporação natural das pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal.
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3 comentários:

  1. Maravilha de texto, muito esclarecedor! Parabéns Vinicius!
    Vou contar um episódio que aconteceu comigo: Cheguei a ser aprovada num concurso público prestado na Unicamp e fui chamada alguns anos depois, para um cargo administrativo. Não me inscrevi como "deficiente física", mas foi costatada uma "deficiência" nos exames admissionais: perda auditiva severa. Correram para me incluir na contagem do sistema de cotas. No entanto, me colocaram para trabalhar onde? Ao telefone! Ou seja: preencher a vaga sim, mas oferecer condições de trabalho adequadas, nem sempre...

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  2. Oi Fabi, muito obrigado!
    Realmente algumas empresas - e autarquias públicas - se preocupam mais em cumprir a cota e fugirdas multas do que promover uma inclusão de fato, valorizando o potencial produtivo da pessoa com deficiência...

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  3. Prezada Eduarda,

    legal, muito obrigado! É isso mesmo, a Lei de Cotas, como instrumento de ação afirmativa, é apenas parte da estratégia para acelerar o processo de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Não podemos prescindir das políticas sociais universais, que devem ter um caráter inclusivo.

    Um grande abraço,
    Vinicius.


    Em 26 de abril de 2011 14:35, Eduarda Leme escreveu:


    Olá, Vini!!
    Estou adorando receber seus textos desse blog! Gostei muito dessa última matéria, problematizando a Lei de Cotas como panacéia. Concordo plenamente com vc; não podemos nos "cegar" com a Lei de Cotas - embora ela seja útil e positiva, e promova avanços -, negligenciando o universo mais amplo onde a questão das pessoas com deficiência se insere. Temos que pensar até que ponto as ações afirmativas, enfocando problemas pontuais, como "band-aids" tentando proteger feridas muito mais profundas, não acabam desviando nosso olhar e nos impedindo de enxergar a verdadeira dimensão do problema, que diz respeito à justiça social, a políticas públicas universais e igualitárias, e à igualdade de acesso aos bens sociais.
    Um grande abraço
    Eduarda

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